Em um almoço de família, Gilberto Braga (1945-2021) ouviu do irmão mais novo as reclamações sobre tio Darcy, um delegado da Polícia Federal que não prosperou financeiramente por ser honesto demais — logo no Brasil, disparou o irmão, onde era impossível ficar rico por meios louváveis. O questionamento sobre se valia a pena ser uma pessoa honesta no país do “jeitinho” deu ao autor o impulso para criar a novela Vale Tudo (1988), a primeira de uma trilogia de folhetins — seguida por O Dono do Mundo (1991) e Pátria Minha (1994) — que dissecam os dilemas éticos da vida nacional. A trama, que se revelou um dos maiores sucessos da história das novelas, centrava-se no conflito entre Raquel (Regina Duarte) e Maria de Fátima (Glória Pires), mãe e filha de índoles opostas — enquanto a genitora queria vencer pelo trabalho duro, a rebenta sonhava em ser uma modelo famosa e abominava a pobreza em que cresceu porque o avô, um funcionário do Tesouro Nacional, se recusara no passado a aceitar propinas e favorecer poderosos. Vale Tudo deu ao mundo, ainda, uma personagem que era o epítome da desigualdade em um país dividido pelo abismo entre ricos e pobres: a vilã Odete Roitman, que tinha nojo das pessoas humildes e odiava o Brasil. Pois esses personagens que ainda hoje habitam o imaginário nacional estarão de volta ao horário nobre da Globo a partir desta segunda-feira, 31, quando estreia o antecipado remake de Vale Tudo — com Debora Bloch no papel da megera imortalizada por Beatriz Segall na novela original.
Ácida e afiadíssima, Vale Tudo redefiniu a estatura dos folhetins no final da década de 1980. Mais que a força narrativa, porém, o que fez dela um sucesso tão memorável e influente foi o fato de que nunca antes uma telenovela captara de forma tão cirúrgica os sonhos e desilusões de um momento histórico do país. “Vale Tudo falava do Brasil sem metáforas: as críticas sobre a política, por exemplo, eram bem diretas. Por isso, as pessoas lembram daquela época por meio dos personagens da história”, diz a doutora em comunicação pela PUC-Rio Ana Paula Gonçalves, autora de um recém-lançado livro sobre a novela, O Brasil Mostra a Sua Cara (Editora Autografia).
Como se depreende da própria música de abertura, feita por Cazuza e celebrizada na voz de Gal Costa, o Brasil era um país que, de fato, hesitava em mostrar sua verdadeira cara: o ufanismo e a hipocrisia reinantes varriam problemas graves para debaixo do tapete. Havia no ar euforia com o início da redemocratização — a novela estreou às vésperas da promulgação da Constituição “cidadã” de 1988 pelo deputado Ulysses Guimarães. Mas foi um período, sobretudo, de frustração das expectativas com o novo país. Nos tempos do governo Sarney, a esperança no Plano Cruzado havia sido derrotada pela hiperinflação. A corrupção, a impunidade e a injustiça social campeavam soltas — e os personagens da novela escancaravam o fosso moral do país. Agora, a nova versão de Vale Tudo oferece uma oportunidade de atualizar esse exame de consciência da nação: afinal, nos quase quarenta anos que se passaram entre as duas novelas, o Brasil mudou para melhor ou continua a ser a pátria do jeitinho, do cinismo e do preconceito?
De modo geral, notam-se evoluções positivas aqui e ali — mas muitas mazelas continuam bem vivas, infelizmente (confira o quadro). As mais simbólicas talvez sejam a corrupção e sua prima-irmã legitimamente brasileira, a impunidade. Desde a época dos escândalos de superfaturamento e nepotismo do governo José Sarney, o país viveu diversos ciclos de tentativas de expiação desses males, da CPI do mensalão à Operação Lava-Jato. Nada indica, contudo, que essa praga vá acabar — pelo contrário. O noticiário acaba de ser tomado por um grande escândalo na esfera pública, a investigação da venda de sentenças no STJ, e não é diferente na iniciativa privada, em que os estragos da quebra das Americanas ou a morosidade para julgar os culpados por tragédias como o incêndio da Boate Kiss causam justificada revolta no público.
A impressão de que o Brasil pode ter ficado até pior nisso do que era em 1988 foi corroborada pela edição de 2024 do Índice de Percepção da Corrupção (IPC), o mais respeitado termômetro global do problema: o país atingiu sua pior posição até hoje, ocupando o 107º lugar no ranking internacional. Continua mais válida que nunca, enfim, a notória cena em que Marco Aurélio, empresário corrupto vivido por Reginaldo Faria na antiga Vale Tudo e por Alexandre Nero na nova versão, mandava uma banana para o país ao fugir impune, carregando milhões de dólares que roubara da TCA, a companhia aérea da sogra, Odete Roitman — acompanhado da mulher, Leila (Cassia Kis), que escapou também ilesa após assassinar a vilã, mistério só revelado num último capítulo que parou o país.
No caso da desigualdade, resumida na tela pela figura insensível de Odete, a situação é de um avanço relativo. “Vale Tudo é a novela que explicita de maneira mais contundente e objetiva o desnível social do Brasil”, diz Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela USP. Desde os tempos em que a hiperinflação corroía a renda dos brasileiros, sobretudo das camadas mais humildes, o país passou por reformas e programas que atenuaram em alguma medida o fosso entre os mais ricos e os pobres, como a estabilização da moeda trazida pelo Plano Real ou o benefício social do Bolsa Família. O Índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, permite radiografar esse avanço: se em 1988 ele era de 0,616, no terceiro trimestre de 2024, dado mais recente, caiu para 0,517 — quanto mais próximo de zero, menor a desigualdade num país. Mas, claro, o país ainda tem desafios imensos para se tornar menos injusto socialmente — o que reforça a aura atemporal da vilã de Vale Tudo. “A Odete representa essa elite que vem de uma herança escravagista e é, infelizmente, muito atual ainda”, analisou sua nova intérprete, Debora Bloch, a VEJA (leia a entrevista).

Na área dos costumes, o Brasil de 2025 fica melhor — às vezes, bem melhor — na foto do que o daqueles tempos ainda tisnados pela sanha repressora da ditadura militar. Um exemplo importante das mudanças é a questão racial. O Brasil já era e continua a ser tristemente racista — a percepção sobre o problema, aliás, só aumentou nos últimos anos. Segundo pesquisa do Datafolha divulgada no ano passado, 45% das pessoas acham que o racismo aumentou no país nos últimos anos e 59% da população acredita que a maioria discrimina pessoas pela cor de pele. Ainda assim, há mudanças positivas no modo com que a sociedade encara e pune o preconceito — o racismo foi transformado em crime inafiançável pela Constituição de 1988, por sinal.
A evolução é visível inclusive na tela da própria Globo. Se a Vale Tudo clássica tinha apenas dois personagens negros, e em papéis totalmente estereotipados, as faces negras hoje estão no protagonismo das novelas. Tanto a trama das 6, Garota do Momento, quanto a popular Volta por Cima, do horário das 7, exibem heróis e heroínas negros que mobilizam a audiência. Ao menos aí, já é possível dizer que a nova Vale Tudo redime a original: tanto a batalhadora Raquel quanto sua filha Maria de Fátima serão vividas por atrizes negras, Taís Araujo e Bella Campos.
Para os fãs da primeira novela que não conseguem imaginar Odete aceitando uma nora negra por ser racista, a nova intérprete traz luz a um fato verossímil: não são só os brancos que cometem atos de intolerância racial. “Odete poderá instrumentalizar a Maria de Fátima e se utilizar do fato de ela ser preta para se beneficiar”, adianta a atriz. “A Raquel ser negra adiciona uma camada nessa história, que fica mais rica”, completa Taís. Ironicamente, a Raquel de sua antecessora, Regina Duarte — hoje uma ferrenha bolsonarista e anticomunista —, tinha tanto carisma que ganhou fãs como o ditador Fidel Castro. Tocado pela personagem que vendia sanduíches na praia até se tornar proprietária de uma rede de restaurantes, Fidel legalizou um modelo de negócio privado semelhante que funcionava clandestinamente em Cuba desde 1993. “Esses restaurantes têm o nome de Paladar por causa da empresa de Raquel”, informa o especialista Alencar.

Ainda na seara da discriminação, a nova versão pretende ir além da trama de 1988 ao tratar de um estrato que por muito tempo foi tabu nas novelas: os homossexuais. A trama concebida por Gilberto Braga, escrita em parceria com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, foi a derradeira produção do gênero a passar pelo crivo da censura herdada do regime autoritário. Com isso, mal pôde desenvolver a história do único casal lésbico da trama, formado pelas personagens Laís (Cristina Prochaska) e Cecília (Lala Deheinzelin). A história delas foi reduzida à luta por direitos ao patrimônio de casais homoafetivos em caso de perda do parceiro — Cecília morre no meio da novela. Hoje, quando o colorido da Parada do Orgulho na Avenida Paulista comprova a força da afirmação LGBTQIA+, o par romântico do mesmo sexo deve ganhar mais destaque por meio das atrizes Maeve Jinkings e Lorena Lima.
Uma das questões que mais afligem os noveleiros, a propósito, é o quanto a criadora do remake, Manuela Dias, ousará mudar numa história tão antológica. Autora da série Justiça e da novela Amor de Mãe, ela já teve de vir a público para garantir que não, não irá transformar Vale Tudo em mais uma empreitada politicamente correta — mas só nas próximas semanas se saberá ao certo o que mudará ou não. É razoável que alguma cor mais humanista e atual seja dada a personagens que, apesar de inesquecíveis, pedem mais complexidade na teledramaturgia atual. É o caso de Heleninha Roitman, a filha alcoólatra da vilã, eternizada por Renata Sorrah. Na Heleninha da nova Vale Tudo, corporificada por Paolla Oliveira, seus porres homéricos certamente serão vistos à luz das preocupações modernas com a saúde mental, algo inexistente na época. “O estigma ainda é muito sério. Muitos acham que o alcoólatra é só aquele homem que está morando debaixo da ponte, e não é bem assim”, reflete Paolla.
Se o projeto de refazer Vale Tudo fará jus à força da novela original é um mistério que depende, obviamente, do veredito dos espectadores. E a verdade é que eles andam ariscos em relação às produções folhetinescas da Globo, em especial da faixa das 9 — que vê sua audiência cair há tempos e chegou ao fundo do poço com Mania de Você, de João Emanuel Carneiro, que se despedirá como o pior ibope da história do horário. Vale Tudo é, portanto, uma espécie de bala de prata para tentar reverter a fuga de público — e a tensão com tamanha responsabilidade é perceptível. A Globo investiu os tubos na festa de divulgação em grande estilo no hotel Copacabana Palace. Nos bastidores das gravações, nos estúdios do Projac, o clima é de pressão no ar. VEJA acompanhou os trabalhos por um dia e, apesar do entrosamento entre os atores, foi possível sentir o peso das encenações intensas de 1 da tarde até 9 da noite — ou além. Um dos diretores auxiliares se mostrou exigente com uma cena de Maria de Fátima (Bella Campos), Solange (Alice Wegmann), Afonso (Humberto Carrão) e Sardinha (Lucas Leto) que foi gravada várias vezes para que o texto fosse reproduzido à risca. Em outra sequência do núcleo Roitman, o diretor Paulo Silvestrini captou diálogos de Carrão, Paolla Oliveira e outros atores de vários ângulos para conseguir expor a tensão da família com a chegada de Odete Roitman.
Enquanto a nova Odete não entra em cena, a grande personagem real da trama — a própria nação — merece ser reavaliada. “A gente vive num país onde a corrupção não está resolvida, assim como outros temas. Evoluímos em alguns pontos, mas a sociedade tem de avançar muito mais”, diz a autora Manuela Dias. Que o Brasil mostre sua cara, mais uma vez.
“A Odete ainda é muito atual”
Aos 61 anos, Debora Bloch fala da missão de interpretar uma das vilãs mais emblemáticas da teledramaturgia — e de como Vale Tudo segue relevante.

Na novela original, Odete Roitman personificava não só o preconceito e a insensibilidade de uma parcela da elite brasileira, mas o abismo de classes. Essa premissa continua válida? Completamente. A Odete, infelizmente, é uma personagem muito atual, que representa essa herança colonial e escravagista que ainda está aí, descompromissada com o país. E vemos no Brasil e no mundo pensamentos retrógrados e conservadores renascendo.
Na trama, Odete se une a Maria de Fátima e arma o casamento dela com seu filho, Afonso. O fato de Fátima ser negra agora não deveria gerar rejeição da vilã? A Odete é preconceituosa, sim, mas ela subestima a Maria de Fátima, a vê como manipulável e subornável, então vai usá-la. Mas vai acabar levando uma rasteira, porque a Maria de Fátima é esperta.
Vale Tudo ainda tem algo a dizer sobre o Brasil? Acho que a questão da ética, se vale tudo para conquistar os próprios interesses e danem-se os outros, ainda é muito presente. É a falta de um olhar para o bem-estar coletivo. Acredito que não vale a pena se dar bem sozinho. Também temos uma nova onda de extrema direita dominando o mundo. Lutamos tanto pela democracia e hoje vemos gente pedindo a volta da ditadura, revogando direitos. Temos de estar sempre alertas.
A senhora e Beatriz Segall (1926-2018) trabalharam juntas na novela Sol de Verão (1982). Após Vale Tudo, teve a chance de conversar com ela sobre Odete Roitman? Meu pai, Jonas Bloch, fez várias peças de teatro com a Beatriz quando eu era criança. Montaram Hamlet, Os Executivos, entre outros, e eu estava sempre no teatro, então ela me conheceu pequena. Anos mais tarde fizemos Sol de Verão, e agora estou aqui com um papel que marcou muito a carreira dela. Nunca falamos sobre a personagem, mas acho bonito esse ciclo.
Publicado em VEJA de 28 de março de 2025, edição nº 2937