Mal saído vitorioso das urnas em novembro, Donald Trump, que não quer saber dos Estados Unidos enrolados em guerras que “não são suas”, começou a espalhar o aviso: “Ou se alcança uma trégua e libertação de reféns entre Israel e o Hamas antes da minha posse, ou o pau vai comer”. Não deu outra: na quarta-feira 15, os dois lados anunciaram um acordo, e o que poderia ser o triunfo relativo de Joe Biden em fim de mandato virou a celebração do topete alaranjado. Assim tem sido a vida de Trump nos últimos dois meses e meio — uma fila de políticos, financistas, CEOs, influenciadores, expoentes da imprensa, gente do primeiríssimo escalão em suas áreas prestando reverência e atendendo aos desejos do novo dono do poder em Washington. Nada mau para quem entrou no primeiro mandato, em 2017, como excêntrico e pouco confiável estranho no ninho e saiu dele um pária, insuflador da turba que cometeu o crime de invadir o Capitólio. “Na minha primeira gestão, todo mundo brigava comigo. Agora, todos querem ser meus amigos”, gaba-se.
Afinal, Trump mudou? A resposta é: muito pouco. O que mudou foi a maneira como uma parcela significativa das pessoas se coloca no mundo, não como parte de um todo, mas dentro de bolhas com interesses muito nítidos, muito particulares — e bastante conservadores. Trump e seu entorno souberam ver isso e, surfando com habilidade, chegaram à crista da onda. Na gelada segunda-feira 20 (previsão do tempo, –6 graus), na frente do Capitólio atacado em 2021 e sob a guarda de 25 000 policiais, ele será empossado como o 47º presidente dos Estados Unidos e voltará ao epicentro do poder global mais forte do que nunca. Assume um mandato dito “trifeta”, palavra derivada das corridas de cavalo que define um bilhete triplamente premiado — no caso dos republicanos, a conquista do Executivo e de maioria nas duas casas do Legislativo. Quem pode com um Trump desses?
![NA MIRA - Imigrantes na fronteira: primeiros decretos vão tratar da expulsão em massa dos ilegais](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/GettyImages-2192508606.jpg.jpg)
O comitê inaugural transformou a ocasião em uma megafesta, financiada por doações recordes de 200 milhões de dólares e com direito a um comício, três bailes de gala, um serviço religioso e queima de fogos de artifício, entre outros entretenimentos. Trump tomará posse ao meio-dia e, em seguida, percorrerá a pé, com a primeira-dama Melania ao lado — reabilitada como queridinha dos jornalistas de moda e das grifes de luxo —, a distância que separa o Congresso da Casa Branca, seu novo lar. Nomes de peso se estapeiam por uma vaga na lista de convidados, onde estão confirmados dois chefões das big techs que se bandearam para o terreno conservador, Mark Zuckerberg, da Meta, e Jeff Bezos, da Amazon. Sem falar em Elon Musk, o “primeiro amigo”, que vive há meses colado em Trump e integrará o governo na condição de cortador-mor de todas as gorduras de despesas públicas e, de quebra, prega a bíblia trumpista nos mais espinhosos assuntos internacionais (leia o quadro).
![BENESSES - Indústria petrolífera: não a impostos e restrições, sim à exploração](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/GettyImages-1242283914.jpg.jpg)
Petulante como sempre, o Trump que assume agora é mais incisivo, mais imprevisível, mais convencido de si e, claro, mais amigo dos amigos e mais perigoso para os inimigos. Caprichando nas bravatas, ele atravessou a transição falando em comprar a Groenlândia, ocupar o Panamá e anexar o Canadá em nome dos altos interesses dos Estados Unidos, uma invocação moderna da doutrina do destino manifesto, cunhada em 1845 para justificar a violenta expansão do território americano como uma missão divina de engrandecer a civilização. “No primeiro mandato, o presidente tinha assessores que defendiam as normas democráticas e apontavam a possibilidade de processo criminal”, diz Barbara McQuade, professora de direito na Universidade de Michigan. “Desta vez, cercou-se de seguidores fiéis, que não vão contestá-lo.”
Prevê-se que o retorno de Trump promova uma reviravolta nas prioridades internas e externas do governo americano. A amostra virá no dia 1 do novo governo, quando deve assinar, com caneta de ponta grossa que ressalta a escrita, ao menos 100 ordens executivas relativas ao endurecimento contra imigrantes ilegais, cortes de impostos e incentivos para exploração de petróleo — assuntos sobre os quais não tem total poder de decisão. Mais imediato, por ser direito do presidente, será o prometido indulto aos invasores do Congresso em 2021 — uma barbaridade por ele renomeada “um dia de amor”. Uma pequena amostra da onda conservadora provocada por seu retorno foi a proibição de alunas trans em competições esportivas, aprovada recentemente na Câmara — a primeira vitória trumpista da nova legislatura. Fora dos Estados Unidos, a Casa Branca quer reduzir seu papel na Otan, ONU, OMS e outros organismos e se afastar de aliados da Europa que não se alinhem a estes novos tempos. “Na visão de Trump, os Estados Unidos não precisam ancorar sua política externa em alianças ou políticas de livre comércio”, diz Douglas Schoen, da consultoria Schoen Cooperman Research, de Washington. “Ele enxerga apenas os interesses americanos, mesmo que isso signifique coerção do mais forte sobre o mais fraco.”
![FÃ-CLUBE - Melania: desdenhada no primeiro mandato, agora é queridinha do mundo da moda](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/GettyImages-2162609841.jpg.jpg)
Com a volta por cima na política e o tamanho inédito da rede de apoios construída agora ao seu redor, Trump está mais empoderado do que nunca para testar novamente a capacidade das instituições americanas de resistirem aos seus projetos polêmicos, como o da “maior deportação da história” ou o fim do Departamento de Educação — parte da cartilha para expurgar o “vírus woke” das escolas — tudo isso, vale lembrar, requer a colaboração de agências diversas e o aval do Congresso. A expulsão de mais de 1 milhão de ilegais por ano, como prometeu, pode encontrar entraves na Justiça e no caixa, já que custaria quase 300 bilhões de dólares. Mais aceitação devem ter as propostas de manter e ampliar os cortes de impostos implantados na primeira gestão e os incentivos à indústria de combustíveis fósseis, acompanhados da anulação de regulamentações ambientais. “Há consenso em torno de medidas que impulsionem os lucros de empresas”, afirma Christopher Tang, professor de economia na Ucla.
Visto com lupa, o caminho a ser percorrido por Trump tem obstáculos consideráveis. Embora sua vitória tenha sido impressionante, considerando que antes da campanha parecia mais próximo do ostracismo político ou até mesmo da cadeia, ela se deu por maioria mediana, embora diga ter sido “uma lavada”, e seu índice de aprovação no momento empata com o de reprovação — e as mudanças que propagandeia não devem ser um passeio porque o Partido Republicano tem maioria apertadíssima na Câmara e no Senado (dois e três assentos, respectivamente). A tropa trumpista controla a legenda, e o presidente da Câmara, Mike Johnson, pretende agir “agressivamente” para cumprir sua agenda, mas há sempre a possibilidade de deserções capazes de virar votações. “Trump inevitavelmente sofrerá um choque de realidade”, avalia o economista Conor O’Kane.
A despeito de alguns obstáculos, o prometido e temido tarifaço de 10% a 30% sobre todas as importações pode, sim, ser instaurado por decreto. “Trump usa taxas como ferramentas de intimidação de modo que nunca se viu antes”, diz Richard Bensel, cientista político da Universidade Cornell. Está funcionando. O Banco Central Europeu estuda aumentar as compras de produtos made in USA para cair nas graças da Casa Branca, mesma atitude contemplada pelo Canadá. O premiê britânico, Keir Starmer, relevando insultos do primeiro-amigo Musk, faz de tudo para fechar vultosos acordos comerciais com os Estados Unidos. O ucraniano Volodymyr Zelensky, aflito com os rumos da guerra contra a Rússia, propôs dar a empresas americanas acesso especial aos minérios de seu país. “Sem distinguir entre amigos e adversários, Trump fará acordos com quem quer que o beneficie”, prevê Natasha Lindstaedt, da Universidade de Essex.
![TURMA - Orbán, Meloni e Milei (da esq. para a dir.): o “arco da direita” forma uma espécie de “internacional trumpista”](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/654364365365.jpg)
Rivais como Rússia e China veem sinais negativos e positivos na perspectiva de uma ordem global mais instável. A famosa imprevisibilidade do novo presidente e posições opostas em áreas críticas deixam as duas potências com o pé atrás. Por outro lado, Moscou espera se beneficiar da provável desidratação da Otan, aliança que considera uma ameaça existencial, e dá como certa a aquiescência da Ucrânia em sentar-se à mesa de negociação, diante do expresso desejo de Trump de acabar rapidamente com a guerra (era para ser também no primeiro dia, mas faltou combinar com os russos e ucranianos). Já Pequim acaba de anunciar o superávit comercial recorde de 1 trilhão de dólares, 21% a mais do que no ano passado, o que mostra a espetacular penetração dos artigos chineses no mundo todo e debilita a intenção de Trump de taxar em 30% todos os produtos feitos lá. Para realmente impactar o poderio do gigante asiático, a política anti-China teria de ser uma ação coordenada com outros países, tanto no acesso a seus mercados quanto no desenvolvimento de tecnologias de ponta, outro fator sensível na rivalidade entre Pequim e Washington. Essa parceria não aconteceu até agora e tem menos chances ainda com o discurso belicoso trumpista.
Se seguir na toada da campanha, Trump presidirá a saída do país da liderança do sistema internacional atual, pondo no lugar um balcão de negócios onde prevalecerá a lei do mais capaz — para Trump, claro, ninguém é páreo para os Estados Unidos. “Conquistas relevantes do pós-guerra, como a ordem mundial baseada em cooperação e multilateralismo, darão espaço a um modelo com menos regras e decisões baseadas em barganhas”, prevê Stefan Wolff, professor de segurança internacional na Universidade de Birmingham. Nesse cenário, o Brasil, que tem relevância marginal para os americanos, terá menos influência ainda, sobretudo agora que assume a presidência do Brics, um bloco considerado hostil a Washington, e vai sediar a conferência do clima da ONU, assunto em que o novo presidente americano joga no time adversário — e no ataque. “Trump será mais favorável à Argentina de Javier Milei, pela convergência de ideias ultraliberais, e com certeza inflamará grupos de direita, com consequências para a política interna brasileira”, diz Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM. Se tudo correr como ele quer, os próximos quatro anos de Trump mais Trump do que nunca levarão ao fim do mundo como o conhecemos. Daí a expectativa de uma reviravolta na ordem de forças da geopolítica às vésperas da posse. Mas é cedo ainda para projeções definitivas, e a única certeza para os próximos quatro anos é a seguinte: vai ser com emoção.
Entre afagos e caneladas
![NO ATAQUE - Musk: o guerreiro Maga faz e acontece na política externa](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/efespseventeen088366.jpg.jpg)
Donald Trump gosta de bater no peito nas grandes questões globais, mas nunca foi muito interessado nas idas e vindas mais corriqueiras da política externa. Sabe, no entanto, da importância de firmar um arco global de alianças de figuras à direita da direita. Para tanto, encarregou o fiel escudeiro Elon Musk da tarefa de irritar desafetos e agradar a camaradas fora das fronteiras dos Estados Unidos, missão que vem sendo cumprida com exemplar vigor — não é à toa que seu executor é dono do X, a rede social que tuíta (algumas coisas não mudam) planeta afora com a potência de 1 000 tambores.
Na pauta dos rapapés, a cruzada do homem de 400 bilhões de dólares começou ainda na campanha — em setembro, foi pessoalmente entregar um prêmio de personalidade do ano a (e flertar com) Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália e expoente da nova direita. Desde então, foi o terceiro elemento em um encontro do chefe com Viktor Orbán, da Hungria, recebeu na fábrica da Tesla o argentino Javier Milei e ofereceu afagos a outros líderes do fã-clube de Trump.
Mais comentada tem sido a agenda dos pontapés. Na Alemanha, onde haverá eleições em fevereiro, o guerreiro Maga (Make America Great Again) postou no X (onde mais?) que o atual primeiro-ministro Olaf Scholz é um “idiota”, declarou que o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), fincado em ideias neonazistas, é “a última centelha de esperança” para o país e deu palanque na plataforma para uma longa entrevista com a líder da legenda, Alice Weidel. Em outra frente, abriu fogo contra o trabalhista Keir Starmer, desenterrando um escândalo antigo para afirmar que o governo britânico encobre gangues de aliciamento sexual infantil, apelou ao rei Charles para dissolver o Parlamento e prometeu doações para o Reform UK, legenda na linha trumpista. Teclado em punho, o senhor das provocações comprou ainda briga com o Brasil e trolou o canadense Justin Trudeau (“tolo insuportável”) e o ucraniano Volodymyr Zelensky (legendou uma foto dele com expressão tensa: “Quando faz mais de cinco minutos que não pede bilhões de dólares em ajuda”), entre outros. Chocado, o francês Emmanuel Macron, que ainda nem entrou na linha de tiro, resumiu: “Nunca se viu nada igual”. E é só o começo.
Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2025, edição nº 2927