Quando eu era criança e ia para a pequena chácara de meus pais, a 6 quilômetros do centro de Taquarituba, onde nasci, gostava de pescar com meu vô.
Criança fala muito, né? Geralmente. Vejo pelo meu filho.
Eu queria conversar o tempo todo, saber das coisas, fazer perguntas, mostrar minhas conclusões imberbes. Meu vô às vezes parecia se incomodar, o barulho podia espantar os peixes, ele dizia.
Não era só isso.
De vez em quando, mesmo quando não estávamos rodeando o açude, ele se afastava um pouco, passava alguns minutos olhando para o nada, como se contasse os passarinhos e depois contasse outra vez só para conferir, avistando aquele horizonte afinado, plano quase infinito assoberbado de árvores, mato, com o céu azulzinho encostando no chão lá na frente inalcançável.
– Tá tudo bem, vovô? — perguntei uma vez.
– Tudo. Só estou observando o silêncio.
Meu avô era um homem que observava silêncios. Fiquei estupefato. Eu devia ter uns 9, 10 anos. Já gostava de poesia mas ainda não conhecia Manoel de Barros.
A imagem grudou em minha retina. Tem muita sabedoria em observar o silêncio. Mais ainda do que cultivar silêncios. É uma canção sinestésica partiturada apenas com átomos, um bocadinho de ar, de vez em quando uma poeira levantada pela terra roxa ressequida onde não tem grama.
Hoje vejo que a pescaria também era só pretexto. Aqueles minguados lambaris que mal davam para uma fritada no almoço não justificavam as horas empunhando vara, botando minhoca no anzol. O que ele queria mesmo era observar o silêncio.
Meu vô morreu antes de minha aventura no estrangeiro, não sei se alguma vez imaginou que o neto refaria a vida em uma terra distante. Era curioso. Quando eu voltava de minhas viagens cometia perguntas, queria saber como as pessoas viviam em outras partes do mundo, o que comiam, como se vestiam para enfrentar o frio, do que gostavam. Nunca me perguntou sobre barreiras linguísticas. Nunca pareceu se preocupar se na Mongólia eu não conseguiria conversar em nenhum idioma com os locais ou se o cirílico dificultaria minha chegada a Chernobyl ou se haveria dificuldades no trato para comprar um cafezinho em um pequeno vilarejo no Zimbábue ou ainda como era tropeçar nas placas escritas em alfabeto chinês quando fui conhecer a Muralha.
Compartilhar silêncios é uma forma de se comunicar
Não era homem letrado, como se diz. Se ele ainda fosse vivo, não sei se seria capaz de lhe explicar como é penoso aprender esloveno, com as seis declinações desta gramática árida. Talvez para ele não fizesse sentido uma língua com três gêneros, diferentes tipos de plural, construções sintáticas desconfortáveis e palavras sem nenhuma vogal.
Mas eu gostaria de dizer para ele que, não importa o país, é possível observar o silêncio, como eu aprendi vendo-o fazer. E na falta de palavras exatas, quando nenhuma língua franca une os diferentes, o silêncio compartilhado também é uma forma de comunicação plena, intensa, bonita.
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