Em suas Confissões, Agostinho de Hipona, depois tornado santo, confessa a Deus a sua fé e a sua ignorância. No capítulo 11, pergunta desesperadamente ao Criador a respeito do tempo e de Sua eternidade. Como pode sempre ter existido? E como Deus, estando fora do tempo, pode ter criado o mundo ao longo do tempo? Até que no parágrafo 17 Agostinho se desfaz de qualquer tipo de vergonha e pergunta sem rodeios, na lata: o que é o tempo?
A partir daí se segue uma fantástica cadeia de argumentos que termina em uma conclusão bastante clara. No mundo não existe tempo. Horas se decompõem em minutos, minutos em segundos, segundos em milésimos de segundos e por aí vai. Mas o mundo não percebe o tempo, apenas nós o fazemos, os seres humanos. Nós, no presente, lembramos do passado e nos angustiamos com o futuro. O passado é o presente que já não existe mais e, portanto, pertence apenas às memórias do ser; o futuro é o presente que ainda não é, que reside nas expectativas do devir. E o presente, pobre presente, que para ser presente precisa deixar de sê-lo no exato instante em que acontece. Porque, se o presente permanecer no instante, ele se torna eternidade. E caso se tornasse eternidade, o presente deixaria de ser parte do tempo, que tem como pressuposto a passagem.
As reflexões de Santo Agostinho têm tudo a ver com a reforma tributária, que recentemente foi regulamentada pela Lei Complementar n. 214/2025. Encerrada a tramitação do texto no Parlamento, chega a hora de baixar a guarda, seja para arrefecer as críticas, seja para cessar as comemorações em torno dela. Vamos falar sério. O pragmatismo deve tomar assento nas discussões e, em nome dele, devo dizer que o tempo é curto para as providências que devem ser tomadas. Já em janeiro de 2026, a CBS e o IBS começam a rodar em fase de teste. Em 2027, daremos o adeus definitivo ao PIS e à Cofins e, a partir daí, a CBS irradiará seus efeitos com força total. Neste texto, e nos próximos desta coluna, abordarei pontos que merecem especial atenção dos contribuintes, porque impactarão demasiadamente as suas operações.
Comecemos pelo regime de créditos, que foi profundamente modificado. Hoje, de acordo com as regras aplicáveis ao ICMS, IPI, PIS e Cofins, o contribuinte toma os créditos fiscais quando adquire as mercadorias ou insumos, mesmo que o seu fornecedor não pague os tributos. Mas a coisa mudou e agora os créditos somente serão atribuíveis ao adquirente se o fornecedor efetivamente recolher a CBS e o IBS. E, para evitar inadimplência fiscal, foi criado o split payment. Em suma, a instituição responsável pelo pagamento das operações será responsável, também, pela segregação dos valores que são da operação, propriamente, daqueles que dizem respeito aos tributos. Os primeiros serão remetidos ao fornecedor, que fez a venda, e os tributos ao Fisco. Todavia, antes a empresa de pagamentos deve verificar se o fornecedor tem créditos fiscais naquele exato dia, porque, se tiver, os tributos a serem repassados aos cofres públicos já deverão estar reduzidos por esses créditos.
Perceberam a complexidade? Os softwares fiscais utilizados pelos contribuintes deverão estar integrados com os sistemas da Receita Federal (competente à gestão da CBS), do Comitê Gestor (competente à gestão do IBS) e das empresas de pagamentos. A sincronia entre eles deve ser perfeita, porque se algum apresentar inconsistências, de modo a impedir que as empresas de pagamentos acessem os dados dos créditos fiscais dos contribuintes naquele momento, eles provavelmente serão “tungados” em valores maiores do que os devidos.
É verdade que a Lei Complementar n. 214/2025 garante que, nesses casos, o contribuinte será ressarcido da diferença em apenas três dias úteis. Mas a operacionalização do sistema e o eventual ressarcimento dos valores em prazo tão exíguo configuram gigantescos desafios.
O país, hoje, conta com cerca de 22 milhões de pessoas jurídicas ativas. Ou seja, teremos milhões de empresas realizando e recebendo dezenas de milhões de pagamentos todos os dias. Serão dezenas ou centenas de milhões de operações que deverão bater diariamente com as apurações dos pagadores de impostos. Nem todas as empresas têm capacidade de investimentos suficientes em software para atualizações de tamanha envergadura nos sistemas que comercializam. E nem todas as empresas de pagamentos são grandes instituições financeiras com recursos capazes de estabelecer sistemas tão poderosos e confiáveis, muitas delas não são nem conhecidas pelo grande público.
Os fiscos, por sua vez, também podem não ter capacidade para tantos processamentos. Por exemplo, atualmente cerca de 1% das empresas do Brasil são elegíveis a obter ressarcimentos de PIS, Cofins e IPI em dadas condições. Para esses casos, a Receita Federal tem 365 dias para analisar o pleito. Mas esse longo prazo, de um ano, não é cumprido. Prova disso são as milhares de ações judiciais ajuizadas contra o Fisco para que os seus pedidos fossem ao menos analisados. Imaginem o que será a partir de agora, com um número muito maior de empresas devendo ser checadas em um prazo de três dias úteis.
Nesse contexto, os investimentos em sistemas e conformidade fiscal serão bastante significativos. Quem não der conta desses gastos corre o risco de ficar fora do mercado.
Outro ponto a que os contribuintes devem estar atentos também decorre do split payment. Hoje as empresas realizam suas vendas ao longo do mês e registram cada saída com seu respectivo lançamento de débito fiscal. Do mesmo modo, ao longo do mês realizam compras e as registram com o crédito. No final do período, fazem o encontro de contas e apuram o imposto a pagar.
Mas, com o split payment os lançamentos de débitos e créditos serão diários. Isso muda muita coisa. Pela dinâmica comercial, é normal que empresas posterguem as compras de mercadorias e insumos de seus fornecedores para o final do mês. A razão é simples. No final do mês pode acontecer de muitos representantes comerciais ainda não terem batido suas metas de vendas e, por isso, costumam conceder descontos maiores.
No cenário da CBS e do IBS essa prática poderá gerar prejuízos, porque os contribuintes concentrariam seus créditos nos dias próximos ao final do mês, mas, por outro lado, os débitos fiscais continuariam a ser realizados normalmente, em quaisquer dias do mês em que forem realizados. Isso quer dizer que as vendas feitas nas duas ou três primeiras semanas do mês não teriam créditos fiscais suficientes para dar respaldo ao abatimento dos tributos calculados nas operações.
Ou seja, de um lado o contribuinte estaria sacrificando recursos financeiros excessivos para quitar suas obrigações tributárias com o caixa e, de outro lado, estaria pagando pelos créditos fiscais embutidos nos preços de aquisição, sem, todavia, dar a eles efetiva utilização.
O tema mexe com o ponto mais sensível de qualquer empresa ou pessoa, que é o bolso. Eventuais mudanças nos períodos de compras e de assunção de outros compromissos ganha relevância quando vistas as regras de apuração dos tributos a pagar do novo cenário jurídico-tributário.
Santo Agostinho cravou uma expressão que nunca mais saiu do repertório dos pensadores: “tempo do mundo e tempo da alma”. O tempo do mundo é uma sucessão de instantes que não são percebidos pelo próprio mundo. O tempo da alma é o olhar do ser humano sobre passado, presente e futuro, que é reconstruído pela mente sempre que jogamos atenções sobre os eventos da vida.
A partir da sanção da Lei Complementar n. 214/2025, começou o tic-tac para muitas empresas realizarem grandes mudanças. O relógio não sente o tempo que marca em seus ponteiros. Mas empresários, gestores, contadores, controllers e diretores financeiros devem ficar de olhos abertos. O tempo da alma já é sentido. O presente deixa de ser presente a cada instante e a cada dia ficamos mais perto do futuro e das angústias que lhes são próprias. Para que você, no futuro, não fique pensando no que poderia ter feito no passado, tome as providências agora, no presente… ops, ele acabou de passar, com certeza continuará passando.