A grande reforma que ainda não foi feita – depois da trabalhista, da previdenciária e da tributária -, a reforma administrativa segue sendo aguardada, mesmo que, para muitos, seja considerada a mais importante. É ela que deve reformular a maneira como o país gere o funcionalismo público e, em última instância, entrega os seus serviços à população, conforme mostra reportagem da edição deste mês de VEJA Negócios.
“Temos um sistema antigo e engessado, o que gera insatisfação e prejudica o bom funcionamento da máquina pública”,disse a VEJA Paulo Uebel, sócio para governo e setor público da EY Brasil e ex-secretário de desburocratização e gestão do Ministério da Economia, onde foi um dos formuladores da reforma administrativa que chegou a ser apresentada pelo ministro Paulo Guedes.
“A sociedade passa a não confiar nesse sistema, sendo que a credibilidade e a legitimidade do setor público são fundamentais em uma democracia.”
Polêmica e longe de ter apoio dos parlamentares, que são diretamente afetados por ela, a reforma proposta por Guedes (PEC 32) chegou ter sua tramitação iniciada no Congresso, mas acabou engavetada e nunca mais andou. “Toda a proposta pode ser mais debatida e melhorada, sem dúvida, o importante é dar início ao debate”, disse Uebel. Veja a seguir a entrevista completa:
Qual é a importância de uma reforma administrativa para o Brasil?
Atualmente, o Brasil gasta quase 13% do PIB com funcionalismo. A média da OCDE é inferior a 10%, mas com uma qualidade dos serviços públicos superior à nossa. Outro ponto importante é a satisfação e a produtividade dos servidores. O modelo atual é o melhor para atrair e reter talentos? Assim, a reforma administrativa tem três grandes objetivos, nessa ordem: aprimorar a qualidade dos serviços públicos; melhorar o modelo de remuneração, de evolução na carreira e desempenho dos servidores, e alinhar os gastos do Brasil com a média dos países mais desenvolvidos. Para isso, a reforma precisa focar em servir melhor a sociedade, recompensar melhor os servidores que possuem alto desempenho e tornar o serviço público mais moderno, flexível e eficiente.
Qual é o diagnóstico, ou seja, quais são os principais problemas do serviço público atual?
Nosso modelo atual para o serviço público é antigo e é consenso que um dos maiores problemas é a falta de flexibilidade, o excesso de engessamento. Precisamos modernizar e trazer uma sistemática que seja mais compatível com as demandas atuais e que tenha mais foco em servir melhor os cidadãos. Ter formas alternativas de contratação que permitam os governos atrair e reter os melhores quadros disponíveis é uma maneira de fazer isso e é fundamental. Desafios temporários, por exemplo, devem ser enfrentados com uma força de trabalho temporária. Não faz sentido fazer um concurso público para resolver um problema que pode ser solucionado em dois ou cinco anos.
Por que o senhor diz que é preciso melhorar a satisfação e recompensar melhor os bons talentos? Um dos problemas do setor público não é, justamente, que ele é caro e, em alguns casos, já ganha muito acima da média do país?
O modelo atual não estimula o bom desempenho. De um lado, há muitos servidores altamente comprometidos e engajados que não podem ser melhor remunerados. De outro, aquele servidor que não quiser produzir continuará no quadro, sem qualquer consequência. A Constituição Federal já prevê a possibilidade de demissão por baixo desempenho, mas até hoje isso não foi regulamentado e, desde 1988, nunca um único servidor foi demitido por mau desempenho no Estado brasileiro. As carreiras também devem apresentar estímulo para o servidor estar constantemente evoluindo e se aperfeiçoando. Temos muitas carreiras curtas, em que os servidores chegam ao topo muito rápido, o que desestimula as pessoas.
Onde então estão os privilégios e como é possível combatê-los?
O excesso dos chamados “penduricalhos”, que são criados para aumentar a remuneração de alguns servidores, gera uma insatisfação, inclusive, entre os próprios servidores, e isso prejudica o bom funcionamento da máquina pública. Com isso, a sociedade passa a não confiar nesse sistema, sendo que a credibilidade e a legitimidade do setor público são fundamentais em uma democracia. Precisamos ter um modelo de remuneração que seja compatível com o praticado nos países desenvolvidos e que seja proporcional ao nível de complexidade e responsabilidade das funções realizadas.
Restringir a estabilidade dos servidores era um dos principais eixos da reforma proposta por Guedes, mas divide opiniões. O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, por exemplo, foi um dos autores de um outro projeto apresentado à época que contestava isso e se concentrava em melhorar os sistemas de avaliação. Qual é o ônus ou benefício da estabilidade e por que ela deveria ser revista?
A estabilidade é um mecanismo importante para blindar e dar segurança para os servidores públicos que atuam em áreas sensíveis, como atividades que exercem poder de polícia, por exemplo. Mas a aplicação geral dela não faz qualquer sentido. Atividades operacionais ou de apoio não precisam de estabilidade. Elas devem ser regidas por modelos mais flexíveis, que sejam focados nas pessoas que usam os serviços públicos. O governo federal, por exemplo, gasta anualmente mais de 8 bilhões de reais com servidores que ocupam mais de mil cargos extintos ou em extinção. São recursos que poderiam ser melhor empregados em serviços que efetivamente são demandados pela sociedade.
Além dos questionamentos à redução da estabilidade, a reforma administrativa apresentada pelo governo anterior é criticada por parte dos especialistas e também pelo governo atual por ser focada basicamente na redução do Estado e nos efeitos fiscais. Em sua opinião, qual é a importância dessas agendas?
Toda a proposta pode ser mais debatida e melhorada, sem dúvida. Entretanto, a PEC 32 teve como principais objetivos melhorar a qualidade do serviço público, aumentar a flexibilidade nas contratações, combater privilégios, aprimorar o modelo de remuneração, melhorar os mecanismos de avaliação e alinhar os gastos públicos com o que é praticado na maioria dos países desenvolvidos e democráticos. Felizmente, o governo e o Congresso Nacional podem propor melhorias. O objetivo de submeter uma proposta ao Congresso é justamente dar início ao debate e provocar a melhoria da proposta. O importante é manter os objetivos e desenhar um modelo melhor, mais moderno e flexível, que possa resgatar a confiança da sociedade e prepare o Estado para a revolução tecnológica e de inteligência artificial que estamos vendo.