Um grande desafio enfrentado pelo Brasil hoje na área de saúde diz respeito à formação de seus protagonistas: os médicos. Na última década, o país viu um expressivo aumento do número de cursos de medicina, estimulado pelo louvável objetivo de corrigir o vazio assistencial em diversas regiões do país. Na prática, porém, muitos desses cursos, além de inflarem o mercado de profissionais nas grandes cidades e centros urbanos, em vez de atuarem nas áreas carentes, não oferecem a infraestrutura adequada para a formação ideal dos novos profissionais.
O que temos visto é um cenário de distorção de objetivos. Segundo a lei do Mais Médicos, as propostas de criação de novos cursos de medicina deveriam priorizar as regiões com menor concentração de médicos, como o Norte e o Nordeste do país, bem como cidades do interior e áreas remotas. Mais ainda: as instituições de ensino superior deveriam apresentar projetos pedagógicos detalhados, com plano de formação, e contrapartidas para o SUS, além de implantar programas de residência médica e parcerias com hospitais e unidades de saúde locais. Em razão de brechas legais, muitos cursos têm recebido autorização de funcionamento mesmo sem satisfazer as premissas do programa.
A judicialização, que tem sido um problema no setor de saúde como um todo, chegou também às faculdades de medicina, que fazem exames vestibulares, matriculam alunos e iniciam as aulas mediante liminar, sem registro de funcionamento. Os altos preços das mensalidades e a baixa evasão em cursos de medicina são fatores atrativos para os negócios. A alta concorrência para o ingresso nas faculdades tradicionais, por sua vez, torna essas escolas uma opção para os estudantes que sonham com o glamour da profissão. Muitos desses cursos são remotos ou semipresenciais e, em vez de oferecer vagas em programas de residência, direcionam os formandos às especializações lato sensu, que, a despeito do nome, não conferem ao profissional o título de especialista.
Para ser um especialista, o médico deve dedicar aos estudos mais um período, que varia de dois a cinco anos, na condição de “residente” em um hospital. O termo nasceu com o desenvolvimento do modelo inicial de treinamento de cirurgiões criado pelo médico William Halsted, da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, no fim do século XIX: os futuros cirurgiões deveriam permanecer 24 horas à disposição das atividades do hospital, como se lá residissem. O canadense William Osler, primeiro professor de medicina da mesma universidade e médico-chefe do seu hospital, expandiria a residência para as especialidades médicas, aprimorando o sistema. Assim, a residência se tornaria o padrão-ouro na medicina.
No Brasil, a residência médica foi criada em 1945, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Posteriormente, em 1977, foi instituída a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), que passaria a regulamentar e a supervisionar os programas no país. Segundo o último relatório Demografia Médica no Brasil, em 2024, tínhamos 47,7 mil médicos em programas de residência. De um total de 575.930 profissionais em atuação, 263.606 são generalistas, ainda segundo dados do ano passado, divulgados pelo CFM (Conselho Federal de Medicina). Os números mostram, por um lado, a existência de considerável contingente de profissionais sem especialização e, por outro, uma proporção de 2,81 médicos por mil habitantes, o maior índice já atingido no país, que supera o dos Estados Unidos, o do Japão e o da China.
Se, em termos gerais, houve inegável avanço, a situação é bem diferente quando desmembramos os dados. No Maranhão, por exemplo, há apenas 1,3 médico por mil habitantes, enquanto, no Distrito Federal, o índice sobe para 6,3. O quadro que se apresenta é, portanto, preocupante, pois as regiões carentes continuam desassistidas (existe alguma evolução, porém muito lenta) e os centros urbanos, onde se situa a maior parte das faculdades de medicina, estão lotados de profissionais, por vezes, subqualificados. Além disso, os especialistas, de modo geral, também estão concentrados em regiões urbanas e capitais.
Não nos parece produtivo abrir um número ilimitado de cursos de graduação sem vagas correspondentes na residência médica. A qualificação é importante em todas as profissões, mas, na medicina, ela pode representar o destino de um paciente. Mesmo o profissional que deseja atuar de forma abrangente pode – e deve – fazer uma residência, por exemplo em medicina da família e comunidade ou em clínica médica. Com os rápidos avanços da medicina, é difícil conceber um profissional que não se aperfeiçoe ou não se atualize constantemente.
É inegável a importância da residência para a formação do médico. Nessa atividade, ele é desafiado nos vários níveis de complexidade da profissão e recebe orientação para a prática. Em um país com a extensão e a diversidade do Brasil, a vivência do mundo real oferece oportunidades únicas de aperfeiçoamento. Nas palavras de William Olster, “quem estuda medicina sem livros navega por mar desconhecido, mas quem estuda medicina sem pacientes não vai para o mar de forma alguma”.
Hoje o que vemos é que a concentração de médicos em determinadas regiões e o déficit de formação são duas faces de um mesmo problema. Ao mesmo tempo que faltam vagas na residência, faculdades oferecem pós-graduação lato sensu e criam uma espécie de novo perfil de médico, que tem pressa de entrar na vida profissional, geralmente nas grandes cidades, e menos interesse em se aperfeiçoar. É urgente fazer que quantidade e qualidade caminhem lado a lado.