Javier Milei anunciou na segunda-feira 24 a suspensão do sigilo dos arquivos da Secretaria de Inteligência do Estado (Side) sobre a ditadura da Argentina (1976-1983). O anúncio ocorreu no Dia da Memória, data que homenageia as vítimas da repressão, enquanto manifestações tomavam as ruas do país contra os crimes do regime e também para protestar as políticas do governo ultradireitista.
Mas por que um governo que já relativizou a tirania dos generais, acusou as Mães da Praça de Maio de inventarem cifra de vítimas (30 mil, um consenso), e cuja vice-presidente, Victoria Villaruel, de família militar, é notória revisionista abriu os documentos que expõem as chagas do período sangrento?
Equiparação
No Dia da Memória do ano passado, Milei compartilhou em sua conta no X, o antigo Twitter, um polêmico vídeo de 12 minutos com a visão do governo eleito sobre a repressão e a luta armada de grupos de esquerda nos anos anteriores à implementação do regime. Sua mensagem: “Por uma memória completa para que haja verdade e justiça”.
Ao derrubar o sigilo, o presidente argentino objetiva contrapor, se não equiparar, os atos de guerrilheiros aos crimes da ditadura, para compor essa suposta “memória completa” do período repressivo. Ao ressaltar violências cometidas por militantes contrários ao regime na época, o governo pinta o período como um momento de guerra.
“As vítimas do terrorismo desapareceram da memória, foram varridas para baixo do tapete da história. Foram negados seus direitos à verdade, à Justiça e à reparação”, afirmou Villarruel durante um evento de campanha em Buenos Aires, em 2023, em que chamou grupos armados contrários ao regime militar de terroristas, disse terem imposto um “Estado autoritário, comunista, baseado na tirania” e defendeu a indenização de vítimas deles durante o período.
Imprescritível
Na segunda-feira, em paralelo à medida que abriu os documentos, Milei determinou que o ataque do grupo esquerdista Exército Revolucionário do Povo (ERP) à família do capitão do Exécito Humberto Viola, que o matou junto de sua filha de 3 anos em 1974 – ou seja, antes da tomada dos militares – seja oficialmente reconhecido como um crime contra a humanidade. Ele disse ainda que enviará um projeto de lei ao Congresso para estabelecer que os crimes cometidos por grupos guerrilheiros sejam imprescritíveis.
O tema é uma promessa de campanha de Milei. Na Câmara, o governo consegue forjar maioria. No Senado, o cenário é mais complicado, já que há maioria peronista.
“Essa administração defende que o que aconteceu no passado deve permanecer nos arquivos da história, e por isso termina com a opacidade que rodeou durante décadas os documentos e os coloca à disposição da sociedade”, disse o porta-voz da Casa Rosada, Manuel Adorni, em uma mensagem gravada.
A mensagem foi acompanhada de um vídeo semelhante ao de 2024, que reforça a mensagem de que o país vivia um “estado de guerra revolucionária” nos anos 1970, e põe em dúvida os números de 30 mil mortos e desaparecidos — “jamais surgiu de nenhuma investigação” — alegando que tanto a comissão estatal que levantou os casos como a Secretaria de Direitos Humanos chegaram a entre 7.300 e 8.960.
Acusações de revisionismo
Enquanto isso, a administração do outsider autodenominado “anarcocapitalista” tem colocado em prática, desde que assumiu a gestão em 2023, um enxugamento das políticas de memória no país, incluídas aí demissões em órgãos de direitos humanos. Os mais afetados foram aqueles sediados na ex-Escola de Mecânica da Armada (Esma), o principal centro clandestino de tortura da ditadura, depois transformado em um complexo de museus e institutos de memória.
“A retirada de sigilo (dos documentos) é pura demagogia. Quem vai fazer isso? Eles demitiram todo o pessoal especializado no assunto, e o Arquivo Nacional da Memória agora é liderado por Natalia Oriolo, uma especialista em criptomoedas”, disseram representantes do Espaço de Memória e Direitos Humanos, na ex-Esma, ouvidos pela Agência Notícias Argentinas.
Governador da província de Buenos Aires e principal nome da ala mais jovem do peronismo, Axel Kicillof condenou a postura da Casa Rosada no Dia da Memória. Em uma publicação no X, ele afirmou que “discursos de ódio, cumplicidade e descaso” não têm lugar entre os moradores da capital argentina, que disse saberem “que são 30 mil (desaparecidos) e que Nunca Mais os acontecimentos da última ditadura civil-militar podem se repetir”.