Algumas obras ganham aura de atemporais, suscitando, no silêncio ou no barulho das eras, renovadas interpretações e edições. O Príncipe, do filósofo renascentista Nicolau Maquiavel, certamente é uma delas.
Em seu prefácio, o autor soou um tanto quanto profético ao escrever que o livro fora “obtido com longa experiência das coisas modernas e contínua leitura das antigas”. Cá estamos nós repetindo seu método para entender o mundo à nossa volta.
Com esse espírito, pedimos a Newton Bignotto, um dos maiores estudiosos de Maquiavel e responsável pela apresentação do mais novo volume de O Príncipe, publicado pela Autêntica, que selecionasse, no clássico recém-traduzido por Federico Carotti, trechos que teriam muito a dizer a três líderes políticos nos holofotes – Lula, Donald Trump e Vladimir Putin.
Vejamos o que o filósofo florentino pode lhes ensinar. Com a palavra, o professor Newton Bignotto, que tece análises dos momentos dos governantes e as conecta a excertos de O Príncipe.
O que Maquiavel diria a Lula?
Durante seus dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2010, o atual presidente obteve êxitos em vários campos de ação e naturalmente alguns reveses que, no entanto, não impediram que ele deixasse o Palácio do Planalto com altos índices de aprovação e uma destacada liderança no seio da classe política brasileira.
Programas como o “Bolsa Família” garantiram-lhe apoio popular mesmo quando sofreu fortes ataques das forças que lhe faziam oposição. No plano internacional, foi reconhecido como uma liderança expressiva, que catapultou o Brasil para um lugar importante na política externa. Na metade do mandado atual, tem enfrentado forte resistência de muitos setores tanto econômicos quanto políticos, ainda que o país tenha crescido de maneira significativa nos últimos dois anos e o governo tenha enfrentado os problemas na área da saúde herdados do governo anterior e mantenha a inflação sob relativo controle.
No plano internacional, em que pesem as tentativas repetidas do governo de propor solução para desafios geopolíticos, sua presença no núcleo fundador dos Brics e o desejo de colaborar com importantes programas da ONU, o Brasil tem hoje uma posição bem mais modesta do que tinha em 2010. Diante desse quadro adverso, é preciso se perguntar o que está se passando com o presidente.
Maquiavel, no capítulo XXV de O Príncipe, diria: “Disso também depende a variação do bem, porque, se um que governa a si com ponderação e paciência, e os tempos e as coisas giram de modo que seu governo seja bom, tem resultado feliz; mas, se os tempos e as coisas mudam, ele se arruína por não mudar seu modo de proceder. E não se encontra homem tão prudente que saiba se adaptar. Isso, seja porque não pode se desviar daquilo que o inclina a natureza; seja porque, tendo sempre prosperado por aquele caminho, não consegue se persuadir a se afastar dele”.

O que Maquiavel diria a Trump?
Desde sua posse no começo de 2025, o presidente americano tem galvanizado a atenção do mundo inteiro, parecendo querer em pouco tempo revolucionar a ordem global. Os aliados históricos europeus que, desde o final da Segunda Guerra em 1945, marcharam ao lado dos EUA em muitos combates, estão se sentindo ameaçados e perplexos com as atitudes de um presidente que dá mostras de querer abandonar seus aliados mais fiéis em prol de um projeto de poder geopolítico que ninguém sabe exatamente qual é – e quais serão as consequências de sua implementação.
Alguns podem imaginar que ele segue à risca as observações de Maquiavel no capítulo VIII de O Príncipe, quando afirma: “Por isso deve-se notar que, ao tomar um Estado, seu ocupante deve definir todos os danos que lhe é necessário fazer e fazê-los todos de uma vez só, para não precisar renová-los a cada dia, e, não os renovando, poder dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios”.
Essa percepção do sentido das ações iniciais de Trump ajudam a entender apenas um dos aspectos do problema e deixa na sombra aspectos muito mais decisivos para os tempos vindouros. Maquiavel, em seu tempo, serviu como funcionário da República florentina entre 1498 e 1512. Durante esse período, teve contato direto ou conhecimento das ações de figuras fundamentais como o Papa Júlio II, que agia de uma forma impetuosa e parecida com a do atual presidente americano.
Por um tempo, é possível obter sucesso calcando toda a ação política na surpresa e na agressividade das ações. Mas essa abordagem tem seus limites, pois a política não pode nunca ser reduzida ao seguido uso da força. É nesse sentido que Maquiavel diria, no capítulo XVIII: “Deveis, portanto, saber que há duas formas de combater: uma com as leis, a outra com a força; a primeira é própria do homem; a segunda, dos animais; mas, como muitas vezes a primeira não é suficiente, é preciso recorrer à segunda”. Dito isso, Maquiavel adverte: “Isso, ter um preceptor metade animal, metade homem, não significa senão que um príncipe precisa saber usar uma e outra natureza e que uma sem a outra não é duradoura”.
O que Maquiavel diria a Putin?
Se pensarmos no primeiro quarto do século XXI, a figura do dirigente russo se destaca por sua ousadia, violência e persistência. Guindado ao poder após uma década de grandes dificuldades para a Rússia decorrentes da queda do império soviético em 1993, ele soube se firmar como um governante autoritário e sem limites, o que nos permite taxá-lo de ditador sem muita dificuldade.
Se, no plano interno, a Rússia está longe de ter construído uma economia estável e nem de longe pode ser considerada um regime livre, no plano geopolítico soube conservar sua influência em vários cantos do planeta, intervindo diretamente em vários continentes, movimento que culminou com a invasão da Ucrânia.
Com a aproximação do presidente Trump das teses defendidas pelo líder russo, ele tem vários motivos para se sentir vitorioso. Maquiavel lhe diria, no entanto, que sua confiança se baseia em fatos, mas também numa falsa compreensão da natureza da política. O secretário florentino não hesitaria em mostrar-lhe que: “E tampouco se pode chamar de virtude matar os concidadãos, trair os amigos, viver sem fé, sem piedade, sem religião; tais procedimentos podem levar à conquista do império, mas não da glória” (Capítulo VIII).
Além do mais, Putin tem demonstrado uma grande arrogância e confiança em suas ações como se pudesse pela força controlar o futuro seu e de seu país. Nesse sentido, Maquiavel diria: “Mas, restringindo-me mais aos particulares, explico por que se vê um príncipe se sair bem hoje e se arruinar amanhã, sem que se tenha visto mudar sua natureza ou qualquer qualidade sua. Creio que isso deriva, em primeiro lugar, das razões que foram longamente expostas antes, isto é, que o príncipe que se apoia inteiramente na fortuna se arruína conforme ela varia” (Capítulo XXV).