Fabi Filipinas se apresenta nas redes sociais como uma empresária que atua no ramo de marketing, recrutamento e turismo. Suas postagens, entre outras coisas, costumam mostrar oportunidades de empregos e o cotidiano de alguém que vive a 19 305 quilômetros do Brasil, num país de hábitos e cultura muito particulares. Para a Polícia Federal, Fabiana Santos Magante é peça de uma engrenagem criminosa que atua em nível mundial no tráfico de pessoas. Ela trabalha e reside há mais de uma década nas Filipinas, de onde seduz brasileiros com propostas de trabalho e com a perspectiva de uma vida confortável no Sudeste Asiático. É um pacote tentador: o contratante, geralmente uma companhia de telemarketing, arca com os custos da passagem, moradia, alimentação, fora o salário mensal, que chega a 2 500 dólares, o equivalente a 15 000 reais, sem contar eventuais comissões por produtividade. A empresária ainda anuncia que o candidato terá a oportunidade de conhecer praias paradisíacas em seus momentos de folga. Nada disso, infelizmente, é verdade.
As postagens da empresária, segundo a polícia, têm servido de isca para fisgar brasileiros que acabam nas mãos de quadrilhas internacionais de traficantes de pessoas — crime transnacional que movimenta trilhões de dólares. O caso de Luckas Viana dos Santos e Phelipe de Moura Ferreira, revelado no fim do ano passado, é exemplar. Os dois foram atraídos pelo anúncio de emprego em um call center de Mianmar, onde descobriram que haviam caído numa armadilha. Ao chegar ao país, seus celulares e documentos foram recolhidos e a realidade se desnudou. Os rapazes eram obrigados a trabalhar até vinte horas por dia em uma central que aplicava golpes cibernéticos pela internet. As condições eram totalmente insalubres. Não havia água disponível, no dia do pagamento eles eram informados sobre descontos sobre supostas dívidas contraídas e quem reclamava era punido com pauladas e choques elétricos. “Todo dia antes de começar a trabalhar, eles nos obrigavam a cantar uma música, It‘s My Life, como se fosse um hino”, lembra Luckas Viana. O drama durou três meses.
Aproveitando momentos de distração dos criminosos, a dupla conseguiu avisar as famílias, que acionaram as autoridades. Luckas e Phelipe foram resgatados pela ONG The Exodus Road em fevereiro. No local onde eles foram encontrados, segundo um relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, funciona um complexo de galpões construídos pelos grupos que operam várias modalidades de crimes digitais. O lugar, que parecia uma fortificação, é cercado de muros altos com arame farpado, vigiado por seguranças armados. Estima-se que mais de 100 000 pessoas trabalham lá em regime de escravidão — muitas são estrangeiras aliciadas por quadrilhas de tráfico humano.
Procurada por VEJA, Fabiana Magante, a Fabi Filipinas, não foi localizada. Em suas redes sociais, ela afirma que nada teve a ver com o que aconteceu aos dois rapazes escravizados em Mianmar. Dá a entender que eles procuraram por conta própria as tais empresas que aplicavam golpes. E atacou os acusadores: “Os brasileiros têm que f. o rolê. Como pode ter tanto brasileiro filho da p… fora do país? Eles saem do Brasil para f. outro brasileiro em outro país”. O paradeiro da empresária, segundo a polícia, é desconhecido.
A exemplo do que ocorreu no caso de Luckas e Phelipe, na maior parte das vezes, as vítimas são fisgadas por anúncios nas redes. “Se a pessoa consome o jogo do tigrinho, ela pode estar ajudando o tráfico de pessoas. Se está investindo em corretoras de criptomoedas que não conhece, pode estar financiando o tráfico de pessoas. Se consome pornografia, ela pode, indiretamente, estar fortalecendo o tráfico de pessoas”, adverte Cintia Meirelles, diretora da Exodus.
Em 2024, a Polícia Federal abriu 149 inquéritos para investigar denúncias de tráfico humano, o dobro dos casos registrados dois anos antes. São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais são os estados de origem da maioria das vítimas. Nos últimos cinco anos, houve uma mudança de perfil. O tráfico de pessoas antes alimentava redes de prostituição forçada. “Agora, ele também atrai jovens para trabalhos análogos à escravidão”, relata o delegado Henrique Oliveira Santos, chefe da Divisão de Combate ao Tráfico Humano e Contrabando de Pessoas da PF. Ele confirma que os casos de aliciamento para países do Sudeste Asiático preocupam. “As autoridades têm se deparado com um fluxo considerável de pessoas migrando para o Sudeste Asiático, especialmente Camboja e Mianmar”, informa uma cartilha editada pelo Ministério das Relações Exteriores lançada após o resgate de Luckas e Phelipe. “Ao chegarem a esses destinos, esses brasileiros se depararam com longas jornadas de trabalho, privação parcial de liberdade, abusos físicos e obrigação de trabalhar em atividades ilícitas (golpes virtuais), condições que, a princípio, podem vir a caracterizar o tráfico internacional de pessoas”, completa o texto.
A ONU calcula que o tráfico humano movimenta 3 trilhões de dólares por ano, tem seu epicentro nos países do Sudeste Asiático — Brunei, Camboja, Filipinas, Laos, Malásia, Mianmar, Singapura, Tailândia, Timor-Leste, Vietnã e Indonésia —, envolve a exploração de 2 milhões de pessoas, possui redes de apoio espalhadas em vários países e exibe números que rivalizam com o tráfico de drogas e de armas. Com a sedução de ofertas na internet, o negócio atingiu uma escala inédita, aumentando o desafio para autoridades do mundo e do Brasil na repressão aos traficantes.
Publicado em VEJA de 21 de março de 2025, edição nº 2936