Não se deve imaginar que todos os nós tenham sido desatados, mas a proibição dos smartphones nas escolas começa a pavimentar um admirável mundo novo, cujo charme é olhar para o passado: alguns estudantes do ensino médio têm sido vistos nos intervalos das aulas debruçados sobre tabuleiros, de jogos de mesa e xadrez, e cartas nas mãos para o truco e o pôquer, mas sem dinheiro. Aos sábados e domingos, ainda que seja uma quimera imaginar que a turma tenha desligado o celular, e adeus aos reels, marcam-se noitadas de jogatina como as de antigamente, como as de nossos pais no tempo do War e do Banco Imobiliário. Bem-vindo à vida como ela era, mas calma, porque o bode eletrônico segue vivo na sala.
A estatística, acelerada no tempo da pandemia, sustenta o movimento off-line, com um quê de nostalgia. O mercado global de brincadeiras desplugadas foi avaliado em 19,5 bilhões de dólares em 2024. Estima-se que chegue a 34,1 bilhões de dólares em 2030. Embora os Estados Unidos representem o principal mercado dos jogos de tabuleiro, o Brasil aparece em destaque, na liderança entre os países da América Latina. Segundo a Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), os jogos de tabuleiro representaram 13,1% das vendas de produtos em 2024. Pode até parecer pouco, mas não é. Em 2017, eles representavam fatia de meros 9,1%. O avanço é inegável, com várias casas para a frente.

Vive-se uma onda de interesse. Os clubes de xadrez, especialmente americanos, brotam com velocidade. Impulsionados por postagens nas redes sociais — e onde mais seria? — e por plataformas de encontros reais, como o Meetup, os jovens se reúnem para fazer o mundo parar um pouquinho. Há torneios também de clássicos milenares, como o chinês mahjong, composto de 144 peças com diferentes desenhos, cujo objetivo é formar sequências específicas; o ocidental Rummikub, criado nos anos 1930, cujo desafio matemático é compor conjuntos de números; e o indefectível gamão, espraiado a partir do sucesso inicial em países do Oriente Médio.
O interesse por esses jogos, principalmente o xadrez, cresce até entre as celebridades. O piloto Lewis Hamilton, por exemplo, foi flagrado disputando uma partida com seu parceiro da Ferrari, Charles Leclerc, durante um evento da Fórmula 1 — e o que era apenas uma campanha publicitária da Mercedes, há dez anos, valorizando o esforço de concentração e parceria da equipe, virou realidade. Na NBA, há febre real. Jogadores de basquete de equipes rivais movimentam peões, rainhas e reis com as imensas mãos. No fim do ano passado, o francês Victor Wembanyama, astro do San Antonio Spurs, encarou neve e temperaturas negativas e foi a um parque de Nova York para partidas com fãs. Acabou derrotado por um mestre, mas voltou empolgado em organizar um campeonato apenas entre os jogadores da liga de basquete americana.

Como é impossível viver apenas de lembranças, e os tempo da internet não para de bater à porta, há um relevante nicho de desafios de tabuleiros ditos “modernos”. Esqueça o Jogo da Vida e o Detetive, embora ainda muito charmosos. Foram substituídos por outros, como o francês Dixit, em que os jogadores usam cartas ilustradas como se fossem obras de arte do surrealismo, em exercício de quase psicanálise na tentativa de adivinhar quem pôs o que à mesa. O Ticket to Ride é centrado na construção de rotas de trens em um mapa. Ambos passaram a fazer sucesso no Brasil. “São jogos com poder de encantamento muito grande, porque oferecem experiências diferentes daquelas a que a maioria das pessoas está acostumada”, diz Yuri Fang, CEO da Galápagos Jogos, uma das principais empresas do mercado nacional, responsável por licenciar e traduzir títulos importados. Não por acaso, por fazerem pensar, essas brincadeiras têm sido adotadas como ferramentas pedagógicas por professores, eles também afoitos por desligar os smartphones.
Uma boa sacada é seguir um raciocínio do genial e irascível enxadrista americano Bobby Fischer (1943-2008): “Não acredito em psicologia, mas em boas jogadas”. Celebre-se, portanto, a maré nostálgica que faz bem, sem saudosismo, mas com imensa capacidade de retomar o saudável contato lúdico entre as pessoas. O tabuleiro, por um minutinho que seja, quem sabe um pouco mais, é a nova tela. É caminho divertido e sensato, fora da tomada.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935