Foi um pesadelo. Nunca imaginaria que, ao viajar para Portugal nas férias de fim de ano, meu caçula, Henrique, de 10 anos, não voltaria. O mais inacreditável é que quem o impediu de embarcar para casa, no Rio, foi o próprio pai, um ex-juiz português de quem me separei em 2017 e com quem tive ao todo três filhos. Concordamos que eu ficaria com a guarda dos meninos e, num certo momento, ele se mudou para a Europa. E os laços com as crianças se afrouxaram. Apesar de nossas profundas discordâncias — o relacionamento já tinha deixado de ser saudável havia tempos —, nunca quis que perdessem o contato com o pai. Por isso, elas o visitavam todos os anos nas férias. Em geral, eu ia junto. Virou rotina. Mas em 21 de janeiro, data prevista para que voltássemos ao Brasil, Rui, meu ex-marido, decidiu, sem mais nem menos, que Henrique ficaria direto com ele. Bateu um desespero, um vazio, fiquei sem chão — algo que só recuperei agora, quando pude abraçar meu filho de novo, depois de mais de dois meses de agonia.
No mesmo dia em que Henrique foi tirado de mim, entrei com uma medida cautelar e procurei uma advogada. O Ministério Público português entendeu a gravidade e denunciou o caso como rapto internacional de menor, uma flagrante violação à Convenção de Haia. Vivi noites horríveis, não conseguia descansar. Um dia, tentei pegar Henrique na casa do pai, mas fui barrada por seguranças que ele contratou. Chamei a polícia, mas de nada adiantou. Os guardas entraram na casa e apenas disseram: “Seu filho está sendo bem cuidado”. Soube que nem tinham visto o Henrique, que estava trancado no quarto. Felizmente, dava para conversar com ele por celular — exceto numa semana em que o pai cortou a internet. Já tinha até começado a frequentar uma escola portuguesa. Ele me dizia que estava triste e pedia para voltar para o Brasil. Queria estar comigo e com os irmãos mais velhos, Luiza e Afonso. Foi doloroso ficar à mercê dos tribunais, tendo de lidar com a incerteza. Me destruiu.
Além da xenofobia contra brasileiros que se vê em Portugal, a Justiça de lá tem uma tendência machista. A premissa é de que o filho deve ficar com o pai. Na primeira audiência, não quiseram nem saber que eu tinha a guarda de Henrique e que o pai cometia um crime flagrante, dizendo em alto e bom som que não devolveria o menino. A justificativa dada por ele era de que nosso filho corria riscos no Brasil, um lugar perigoso, ou mesmo que não era seguro ficar ao meu lado. Isso sem apresentar qualquer prova que confirmasse uma acusação tão séria. Acredito que há aí alguma pretensão política. Meu ex-marido é da ala da extrema direita e talvez queira mostrar a seus pares de pendor xenófobo algo na linha: “Olhem, consegui salvar meu filho dos males brasileiros”. Fiquei desamparada em Portugal, dependendo de doações de amigos e de uma arrecadação virtual que superou 14 000 reais — esta de gente que viu a história nas redes e se solidarizou. Tive de parar minha vida, meu trabalho, para brigar pelo Henrique.
Esperava um apoio mais efetivo da diplomacia brasileira, mas eles só ajudaram no processo inicial da denúncia ao MP português. Como uma criança é retirada da mãe dessa maneira, num país estrangeiro? Ainda bem que a Justiça funcionou, foi um alívio. Quando vi o rosto do meu filho depois de tanto tempo, a emoção bateu fundo. A expressão dele, séria, também mudou na hora. Estava realmente feliz. Nunca vou apagar aquela cena, em que pude abraçá-lo forte e voltar junto com ele para nossa casa. Mas ficou uma cicatriz, deixada pelo pavor de nunca mais vê-lo. Doeu na alma. Pensei muito nesse vínculo que temos, de mãe e filho — um laço inquebrantável. É um pedaço de mim. Sem Henrique, não existo. Ao descer do avião, pude respirar sem aquele peso e, enfim, retomar a vida com a família completa.
Erika Hecksher em depoimento a Paula Freitas
Publicado em VEJA de 21 de março de 2025, edição nº 2936