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Nossa humanidade comum

“Seu avô era eugenista”, diziam os ataques à psicanalista Maria Rita Kehl, professora da USP, que cometeu o “pecado” de fazer algumas críticas aos movimentos identitários, em uma entrevista. Eles seriam “narcísicos”, disse ela, “fechados para a crítica, para o outro, para o laço social”. Foi o que bastou. A partir daí, em vez de algum argumento, surge a lógica já cansativa da ofensa, a sombra do “cancelamento”, a pretensão vazia de que “temos um tipo de virtude que não pode ser desafiada”. Ao final, a professora Kehl fez o seu ponto. Mostrou, como num experimento social, e sem precisar dar resposta alguma, que sua crítica à lógica do “lugar de cale-se” tinha razão.

Essas coisas se tornaram um pouco o feijão com arroz em nossa arena digital. Ainda por estes dias lia sobre uma agressão ao Walter Salles, diretor de Ainda Estou Aqui, pelo seu “rosto”, seu “traço fenotípico”. Coisas que imaginávamos não pertencer mais à ética de nosso tempo. Tudo um tanto banal, mas ainda assim sintomático de um tipo de intolerância que pauta não todo (e isso é importante), mas muito do ativismo identitário, o que se convencionou chamar de cultura woke. E que por isso vem recuando fortemente no mercado, com uma série de empresas anunciando a revisão de suas políticas de “diversidade”. E aqui vale a observação: não propriamente o recuo em políticas de inclusão — incentivo à formação, oferta de bolsas, exigências de não discriminação e respeito igual — mas o recuo no elemento “tóxico” que tudo isso adquire, na expressão usada pela Starbucks, quando se cruza uma fronteira. O ponto em que políticas positivas de diversidade se convertem em novas formas de exclusão e discriminação de grupos. A lógica da “soma zero”, dita por Obama em um discurso recente, em que supomos identidades fixas e simplesmente “apagamos” pessoas em função de algum enquadramento coletivo. “Somos múltiplos”, diz o ex-presidente. “Sou homem, afro-americano, 63, marido, pai, cristão….” Poderia ter acrescentado muita coisa. Político, democrata, rico, formado em Columbia. E tantas mais. Seu ponto é simples: somos singulares. Cada um tem uma história e uma identidade próprias. E, mais importante, uma dignidade que não está aí para fazer parte de um jogo. E, portanto, não passa de uma lógica rasteira “olhar para alguém e apenas dizer: eles são desse jeito”.

Há uma pergunta a ser respondida aqui: queremos de fato viver em uma sociedade de igualdade, diante da lei (o que não exclui alocar diferentemente recursos nesta mesma sociedade)? Ou desejamos quebrar continuamente a lógica da igualdade jurídica, ao sabor de contextos e jogos de poder? Em boa medida, foi esse o grande tema de Francis Fukuyama em sua análise sobre os sucessos e insucessos de nossas democracias liberais. Fukuyama busca na ideia do thymos, apresentada por Platão em A República, uma espécie de força motriz da história humana. O thymos definido como um tipo de “honra” ou desejo de que “minha dignidade seja reconhecida”. As democracias liberais seriam o momento da história em que a resposta a essa demanda por reconhecimento atinge seu ponto máximo. O ponto em que se torna acessível, igualmente, a cada um. Vai aí a ideia da “isotimia”. Não só uma igualdade diante da lei, mas também de “consideração e respeito”. Por esse caminho Fukuyama chegou a sua conhecida ideia sobre o “fim da história”. Isso não significa, por óbvio, que não haverá distinções, raivas ou preconceitos, pois isso pertence à alma humana. Ou diferenças quanto à riqueza ou à sorte de cada um. Mas que, apesar da infinita diversidade da experiência humana, todos terão sua dignidade igualmente reconhecida pelas instituições. É disso que trata a Declaração da Independência americana quando fala no direito de cada um à busca pela felicidade. E nossa Constituição, quando assegura que todos são iguais perante a lei.

“Queremos, de fato, viver em uma sociedade de igualdade?”

O ponto é que o thymos carrega seu lado obscuro: o desejo humano de sobreposição. A ideia de que não desejamos apenas a isotimia, mas que nosso desejo de “diferenciação” prossegue ativo. Em uma democracia liberal, isso pode ser resolvido pelo mercado. Pela arte, pela moda, pelos esportes e por tudo que diz respeito aos jogos de diferenciação sob as mesmas regras. Mas por vezes vai além. E aí reside o perigo. Isso ocorre quando o desejo de um “reconhecimento igual”, diz Fukuyama, desliza para “uma demanda pelo reconhecimento da superioridade de um certo grupo”. E com isso fazendo ruir a própria igualdade jurídica e de status, que define a alma da democracia liberal. Isso pode ser feito por ditadores populistas ou fanatismos religiosos. E também pela lógica identitária, em nossas democracias. Seja no mercado, na cultura, seja no próprio ordenamento legal. E é sobre isso que muita gente tem parado para refletir nos últimos tempos. Um exemplo dado por Fukuyama lembra do traço universalista das lutas pelos direitos civis de Martin Luther King. A ideia de que todos fossem tratados da mesma forma, independentemente da cor da pele. Ideia que foi migrando, nos anos que se seguiram à morte de Luther King, para a visão de que alguns grupos estavam titulados a um tipo distinto de consideração. Incluindo-se aí a quebra da isotimia e sua pedra de toque, a igualdade diante da lei. No Brasil recente, assistimos a uma decisão judicial reescrevendo, na prática, a lei brasileira sobre a injúria racial, a partir da ideia de que ela só vale para certos grupos. E não para todos, indistintamente, como diz a lei. O direito, que deveria proteger a todos, passa a ser prerrogativa de uma parte da sociedade. Afasta-se do universalismo de direitos em favor de um princípio de “megalotimia”. E está longe de ser um fato isolado em nossa democracia.

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A ideia de que nossos direitos devam oscilar segundo nosso enquadramento em alguma identidade coletiva, com base no jogo dos grupos de pressão, é uma das mais assustadoras ideias da nossa época. Isso vale para qualquer pertencimento, seja de origem, religião, gênero ou raça. Na prática, isso significa reconstruir um tipo de mundo que a duras penas foi sendo vencido pela lenta e difícil afirmação das democracias liberais e seu universalismo de direitos.

Era essa a grande promessa moderna, celebrada naqueles momentos de algum otimismo, no entorno da queda do Muro de Berlim. O próprio Fukuyama admite, algo melancólico, que “a hipótese da decadência” pode estar sempre à espreita. Quando observo o surto de intolerância e relativização de direitos em nossas democracias, é esta imagem que me vem à cabeça. Devagar, vamos aceitando a ideia de que alguém possa ser humilhado não apenas pela cor de sua pele, mas pelo contorno de seu rosto ou ancestralidade. Diante dessas coisas, prefiro me lembrar das palavras de uma jovem escritora francesa de origem marroquina, Leïla Slimani, que escutei por aqui, tempos atrás. “Cada um deveria incluir em sua própria identidade um novo componente que me parece essencial”, disse ela. E concluiu: “O sentimento de também pertencer à grande família humana”. Por ora, palavras perdidas em uma noite fria em São Paulo, mas que poderiam nos servir de alguma inspiração.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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Publicado em VEJA de 21 de março de 2025, edição nº 2936

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