Não, não vou me acostumar com isso de atravessar a rua com convicção de que o pedestre é prioridade, sem precisar olhar para os dois lados — e, mesmo olhando, ainda ter de tomar um cuidado extra porque algum carro desavisado a 120 por hora pode surgir virando a esquina e achando que vigora a lei do mais forte. Não, não vou me acostumar. Parece até arrogância. É muita confiança.
Não vou me acostumar com a possibilidade de abrir o computador no trem sem me preocupar em ser roubado, com a oportunidade de checar o celular no centro da maior cidade do país com a certeza de que não serei roubado. Não vou.
Não vou me acostumar com os dias curtos do inverno, tampouco com os dias longos do verão. Não vou me acostumar com a cerveja quente, com a pontualidade no começar da festa, com a hora marcada para acabar a festa. Não vou me acostumar com a comida que acaba no fim da festa e é assim mesmo, acabou porque era hora de acabar a festa.
Não vou me acostumar com a previsibilidade das coisas, com o tempo certo de encontrar laranja no mercado, o tempo melhor dos morangos, o tempo exato das flores coloridas, o tempo mais certo ainda de encontrar mexericas, o tempo pontiagudo das tulipas.
Não vou me acostumar com as sobremesas que não são doces, muito menos ainda com as carnes que não são macias. Não vou me acostumar com feira que não tem pastel e caldo de cana. Não vou me acostumar com sebo sem literatura brasileira, churrasco sem picanha, rua sem sujeira, centro da cidade sem mendigos ou sem-teto. Não vou me acostumar com futebol de domingo sem Palmeiras, terreno baldio sem criança descalça jogando futebol. Não vou me acostumar com a quase indiferença pelo futebol.
Não vou me acostumar com praia sem areia, não vou me acostumar a chamar beira de lago de praia. Não vou me acostumar que dá para deixar as coisas na beira do lago, dar um mergulho, voltar e reencontrar as coisas exatamente no mesmo lugar, do mesmo jeito. Mesmo que no meio das coisas estejam coisas como carteira, celular, chave do carro. Não vou me acostumar que dá para esquecer o carro aberto, que dá para andar com o vidro aberto do carro sem medo de ser assaltado no sinal fechado, que não precisa de insulfilm no vidro do carro. Não vou me acostumar que as casas não necessitam de cerca nem de muro, não vou me acostumar que as coisas podem ficar no quintal. Não vou me acostumar que a porta pode ficar aberta.
Não vou me acostumar com a neve e menos ainda agora com a falta da neve graças ao aquecimento global
Não vou me acostumar com o jeito direto de dizer não. Menos ainda com o jeito direto de dizer sim. Não vou me acostumar com a falta do “vamos marcar alguma coisa”, “a gente precisa se ver”, “vamos combinar”, “uma hora vai”. Não vou me acostumar com o sentido literal, preciso, objetivo, exato.
Não vou me acostumar com as pessoas falando baixo, com a falta de conversas paralelas. Não vou me acostumar com as pessoas assistindo ao jogo sentadinhas na arquibancada, com as pessoas curtindo o show sentadinhas na plateia. Não vou me acostumar com o aplauso em vez do grito da torcida, com as palmas em vez do canto em conjunto.
Não vou me acostumar com a técnica em vez do improviso, com a organização em vez do inusitado, com as poesia-práxis suplantando o modernismo. Não vou me acostumar com a família que não quer vir me visitar, conhecer, aproveitar. Não vou me acostumar com a sazonalidade das árvores e plantas, ora frondosas, ora coloridas, ora desnudas. Não vou me acostumar com pólen da primavera, atchim, com a chuvarada de maio, com o calor esquisito do verão, tão diferente do calor do verão do Brasil. Não vou me acostumar com a neve e menos ainda agora com a falta da neve graças ao aquecimento global.
Não vou me acostumar com os supermercados que fecham aos domingos, não vou me acostumar com a dificuldade de encontrar farinha de mandioca, polvilho, doce de leite e goiabada. E cachaça. Não vou me acostumar com a caipirinha feita errada, com o maracujá de gosto errado, com o côco também de gosto errado segundo quem gosta de côco. Não vou me acostumar com os esquilos, os cervos e os passarinhos que frequentam os arredores de minha casa nem com a polca como música de fundo no restaurante.
Não vou me acostumar com a melhor distribuição de renda, com a justiça social, com a boa escola pública de acesso universal, com a quase insuportável sensação de segurança. Não vou me acostumar com o poliglotismo, muito menos ainda com a gramática da língua eslovena. Também não vou me acostumar com a existência de palavras sem vogal.
Por mais que a gente se reinvente no estrangeiro, se revista de um novo viés, seguimos sendo quem somos. Ainda que o ser foi e seja e fosse e será constante transformação — oximoro essencial que mistura o estático com o movimento.
Por mais que a gente se reinvente, o não se acostumar garante a surpresa. E a surpresa é o tempero da vida, não é?
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