Sob um cessar-fogo cuja permanência é fiscalizada minuto a minuto, sempre a ponto de ir pelos ares (literalmente), Israel recebeu de volta, após dramáticos 470 dias de cativeiro em Gaza, três mulheres levadas pelo Hamas no cruel ataque de 7 de outubro de 2023, que desencadeou uma guerra em larga escala. A devolução delas e de cinquenta prisioneiros palestinos consolidou o início da primeira das três fases de um acordo arrancado a duras penas — nos próximos 42 dias, 33 reféns devem retornar a Israel (um segundo grupo está previsto para sábado 25), em troca da liberação de cerca de 1 000 presos palestinos. Cada um empenhado em pintar a trégua como um triunfo do seu lado, militantes do Hamas emergiram dos túneis e desfilaram armados pelas ruas de Gaza, enquanto o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu se gabava de haver “mudado a face do Oriente Médio”. São demonstrações de força que montam o cenário para cruciais e dificílimas negociações.
A nova etapa de discussões começa em 4 de fevereiro e tratará de temas espinhosos. Um deles é a lista de prisioneiros que o Hamas exige em troca dos reféns restantes (vários deles sem vida), da qual constam líderes detidos há décadas e considerados perigosos e extremistas. Outro é o cronograma da retirada das tropas israelenses, que o Hamas exige ser total, enquanto o governo de Netanyahu insiste em manter controle de pontos estratégicos no território. Mais complicada ainda é a instalação de uma nova liderança em Gaza aceitável para Israel, que obviamente rejeita qualquer papel do Hamas, que governou o local por dezoito anos, e igualmente se opõe à presença da Autoridade Palestina, herdeira da Fatah, de Yasser Arafat, que administra partes da Cisjordânia ocupada, mas é vista como uma organização obsoleta e corrupta na qual nem os palestinos confiam. “O acordo é uma trégua frágil, e não uma cessação do conflito, o que exige um retorno quase imediato à mesa de negociações para manter as fases restantes vivas e pressão externa constante, sobretudo dos Estados Unidos”, diz Sanam Vakil, diretora para o Oriente Médio do think tank britânico Chatham House.
Consultado sobre as chances de o cessar-fogo se manter, o próprio presidente Donald Trump, um de seus avalistas, disse duvidar — sempre ressaltando que “essa guerra é deles, não é nossa”. Se algum pacto for alcançado que leve ao fim definitivo das operações armadas — um “se” de proporções monumentais —, a terceira fase será encarar a reconstrução de um território devastado por mais de um ano de bombardeios quase ininterruptos. Já nos primeiros dias da trégua atual, muitos moradores de Gaza deslocados pelos ataques israelenses — cerca de 90% dos quase 2 milhões de habitantes tiveram que se locomover — começaram a voltar para onde viviam, embora as casas sejam escombros sob os quais jaz um número indeterminado de mortos (calcula-se que cerca de 10 000 devem se somar aos 47 000 oficiais). Só a remoção dos mais de 50 milhões de toneladas de detritos pode levar catorze anos e custar 1,2 bilhão de dólares.
Fortalecido pelas investidas militares que fizeram do Hamas uma fração do que era, debilitaram o poderio do Hezbollah no Líbano e encostaram na parede o Irã, patrocinador dos dois grupos, Netanyahu recuperou parte de sua popularidade e tenta agora se equilibrar nas cordas do poder — um feito que exigirá todo o seu conhecido talento para sobreviver a crises. Por causa da trégua, um dos integrantes ultranacionalistas da sua coalizão — o partido de Itamar Ben-Gvir, que renunciou ao cargo de ministro da Segurança Nacional — anunciou a saída e outros ameaçam fazer o mesmo, o que, se acontecer, fará o governo perder maioria e forçará a convocação de novas eleições.
A rebelião da direita radical ortodoxa contra o que vê como concessão inaceitável ao Hamas pode estar por trás da incursão das Forças Armadas israelenses em uma nova frente de batalha. Dias depois do anúncio da trégua em Gaza, caças israelenses iniciaram a operação Muralha de Ferro, despejando bombas sobre Jenin, cidade da Cisjordânia que aloja um vasto campo de refugiados, matando dez pessoas. “Trata-se de uma ação decisiva para eliminar terroristas”, declarou o ministro da Defesa, Israel Katz. Na mesma ocasião, o comandante do Estado-Maior militar, general Herzi Halevi, renunciou e assumiu responsabilidade pelas falhas de segurança que levaram ao ataque do Hamas, eximindo o primeiro-ministro e favorecendo sua defesa na sempre protelada investigação sobre o caso. O futuro de Netanyahu, que está sendo julgado por corrupção, também se encontra atrelado ao esperado apoio de Trump na defesa dos interesses de Israel no Oriente Médio. Com tantas variáveis, as chances de paz — ou ao menos de uma pausa duradoura na violência — seguem em aberto.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2025, edição nº 2928