Cidades são a expressão da civilização humana no século XXI, concentrando metade da população mundial e subindo — segundo as projeções, o percentual chegará a 75% em 2050, uma assombrosa inversão demográfica em comparação com os 3% de 1800. Apesar da transformação profunda na forma como vivemos e interagimos, porém, boa parte das questões que nos atingem continua a ser decidida bem longe, nos corredores da burocracia federal, um processo por vezes nocivo, que afeta a capacidade da democracia de encontrar respostas para os desafios cotidianos e corrói a fé no sistema. De uns tempos para cá, fatores como o agravamento da crise climática e a imigração ilegal despertaram uma inédita reação de governos locais e entidades da sociedade civil. Organizadas em alianças, as cidades começaram a flexionar seus músculos no cenário internacional, acelerando o intercâmbio de informações, experiências e recursos.
Um recente levantamento mostra que há atualmente cerca de 300 redes de cidades interligadas, que orbitam em torno de temas como transformação digital, sustentabilidade, emprego e segurança. A troca de ideias e a disseminação de conhecimento e de soluções criativas em políticas públicas entre os governos municipais tendem a ser, no olhar de especialistas, mais eficientes do que na esfera federal, por se tratar de uma escala bem mais reduzida, o que lhes permite superar com maior facilidade a burocracia, os lobbies e os meandros da política.
Seguindo essas práticas, metrópoles como Tóquio, Londres e Nova York — as três mais inovadoras, de acordo com o Innovation Cities Index — se tornaram um celeiro de iniciativas revolucionárias. “Os governos locais são o poder mais próximo dos cidadãos. E quando as prefeituras se juntam para agir em bloco, ganham uma força significativa”, diz Jaime Pumarejo, prefeito de Barranquila, na Colômbia, e diretor-executivo do Breathe Cities, grupo de quatorze cidades, entre elas o Rio de Janeiro, que promete baixar a poluição atmosférica em 30% até 2030 e prevenir 39 000 mortes prematuras em sua área de atuação.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) patrocina um desses clubes, a Rede Global de Cidades (GCN, na sigla em inglês), com setenta integrantes e a missão de promover ações de preparação para emergências sanitárias e detectar e responder a crises no setor. Em Copenhague, o trabalho do time foi fundamental para a criação do programa Saúde para Todos, que coloca a questão como prioridade em 100% do planejamento urbano. Já o Global Smart Cities Alliance atua no âmbito do G20 e congrega 88 membros, entre eles Barcelona e Amsterdã, voltados para avanços tecnológicos e melhor governança. De todos os temas, a crise climática tem sido o maior impulsionador do protagonismo das cidades. No rarefeito ambiente das reuniões de cúpula, potências e nações em desenvolvimento estão envolvidas em um jogo de empurra que pouco fez caminhar as metas do Acordo de Paris, de 2015, que impôs o limite de aquecimento global de 1,5 grau em relação ao período pré-Revolução Industrial. Em contraste, prefeituras de grandes cidades iniciaram uma corrida para se adaptar aos extremos do clima e reduzir suas emissões.
O marco zero desse movimento aconteceu em 2017, quando o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que o país não faria mais parte de qualquer acordo climático. Em resposta, prefeitos mundo afora reafirmaram seu compromisso, atitude que se repete agora com a nova eleição de Trump. Parte desse movimento, a cidade-Estado de Singapura implantou uma rede de transporte totalmente elétrica por meio de um modelo de parceria público-privada que vem servindo de modelo para os outros. A região metropolitana de Londres, por sua vez, é palco da maior zona de baixa emissão de carbono dentre todas, tendo inaugurado um sistema para atacar a poluição, taxando a circulação de veículos em áreas restritas, que é copiado em todo o globo — Nova York, por exemplo, acaba de introduzir a medida. O prefeito de Londres, Sadiq Khan, é o atual copresidente da C40, que reúne 97 cidades de todos os continentes, Rio e São Paulo entre elas, representando 20% do PIB global e 580 milhões de pessoas.
As grandes cidades sempre estiveram na vanguarda do desenvolvimento, promovendo trocas comerciais, oportunidades de educação e melhor saúde pública. Quase todos os movimentos sociais modernos tiveram como origem o perímetro urbano justamente porque ele acomoda diferenças, o desacordo e a diversidade. “O espaço urbano é capaz de remodelar a governança a partir de baixo”, explica Katja Creutz, especialista do Instituto de Assuntos Internacionais da Finlândia. Campos de testes de uma era de velozes transformações sociais, econômicas, ambientais e tecnológicas, são elas, as metrópoles, que estão na linha de frente da solução dos complexos problemas do planeta.
Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2025, edição nº 2927