Outrora uma estrela da comédia, a septuagenária Deborah Vance contabiliza décadas de ostracismo à frente de um espetáculo de stand-up antiquado em Las Vegas. Mas então ocorre um daqueles milagres fascinantes do showbiz: com a ajuda de uma jovem roteirista, Ava (Hannah Einbinder), ela areja seu repertório e, enfim, realiza o sonho de apresentar seu próprio talk show. Há correspondências notáveis entre a protagonista de Hacks e sua intérprete na série que acaba de chegar à sua quarta temporada na Max. A americana Jean Smart teve um início de carreira promissor, depois tomou certo chá de sumiço — e agora, aos 73 anos, brilha em Hacks.
A reinvenção de Jean Smart é um feito que vai na contramão de uma perniciosa máxima de Hollywood: a de que atrizes na sua faixa etária estão fadadas, quando muito, a papéis secundários que eventualmente podem ganhar algum destaque. Do alto dos três Emmys de melhor atriz de comédia que conquistou em seguida com Hacks, além do Globo de Ouro e outros troféus, ela mostra que uma mudança positiva no modo de encarar a maturidade feminina está em curso na indústria do entretenimento. Detalhe: a carismática (embora ranzinza) Deborah Vance é seu primeiro papel de protagonista numa série em cinquenta anos de carreira. “Histórias sobre mulheres podem ser tão divertidas e interessantes quanto as histórias sobre homens”, disse Jean a VEJA (leia entrevista abaixo).

No início da década de 1980, então com seus 30 anos, Jean já não era uma mera aspirante a atriz ao se mudar de Seattle para Nova York para trabalhar com teatro. Formada pela Universidade de Washington, com várias peças no currículo e sozinha pela cidade, a atriz buscava testes em anúncios de jornais quando optou por uma audição que fosse perto de seu apartamento alugado com uma amiga. A estrela passou, mas uma confusão entre os produtores do espetáculo fez com que fosse demitida e depois recontratada para outra peça. Por sorte, esse novo projeto — uma montagem da Broadway sobre Édith Piaf, em que ela fez o papel da diva alemã Marlene Dietrich — chamou a atenção para seu rosto no cenário teatral. Não levou muito tempo para que fosse convidada para suas primeiras participações na TV, até ganhar fama na sitcom Designing Women (1986), aos 35 anos.
Dos anos 1990 em diante, Jean até fez trabalhos de prestígio no cinema e na TV aqui e ali, mas sua carreira tomou um rumo mais morno. A fase atual se delineou em 2006, quando brilhou como uma destemperada primeira-dama dos Estados Unidos na série 24 Horas. A mãe melancólica de Kate Winslet em Mare of Easttown (2021) rendeu-lhe a indicação ao Emmy e selou sua redescoberta. Mas foi só com a antológica Deborah Vance que Jean atingiu sua consagração. Desde a estreia da comédia, em 2021, atriz e personagem se tornaram figurinhas festejadas da cultura pop.

Na nova temporada, Deborah enfrenta um conflito ainda mais intenso com Ava, que terminou o terceiro ano da série conquistando a vaga de roteirista principal do talk show após chantagear a comediante — que, birrenta como sempre, não queria lhe dar um cargo tão poderoso. A estrela tenta sabotar a parceira para fazê-la desistir, pois teme que Ava não esteja à altura da pressão por audiência que envolve um grande talk show americano. O maior temor da personagem, no fundo, também se aplica a veteranas como Jean: a indústria reluta em dar oportunidades a artistas mais velhas — que dirá se elas errarem.
Uma participação especial na série ajuda a provar que é possível resistir: a nonagenária Carol Burnett surge em cena para dar conselhos a Deborah na sala de espera de um cardiologista. “Se eu puder ser como ela aos 91 anos, ficarei feliz”, disse Jean a VEJA. “Há muitas pessoas com mais de 60 que não se veem representadas na TV, especialmente não da maneira como Jean personifica essa personagem”, analisa Paul W. Downs, roteirista e intérprete de Jimmy, agente de Deborah na série. Pode ser difícil se manter no topo, mas a graça da maturidade está em rir desse velho e obsoleto tabu.
“Não tentamos dar lições”
A americana Jean Smart reflete sobre como Hacks aborda as dificuldades da mulher na indústria do entretenimento.
As coisas entre Deborah e Ava terminaram com uma briga explosiva no final da temporada passada. Como as encontramos no início da quarta? Continuamos exatamente de onde paramos. Embora seja uma rivalidade muito amarga nesta nova fase, elas ainda são capazes de torná-la engraçada.
Hacks mostra como a indústria do entretenimento é dura com as mulheres, sobretudo as mais velhas. Denunciar isso é uma bandeira? Nossa série não está tentando dar lições. Mas, se estivesse, eu diria que é muito mais fácil chegar às pessoas através do humor do que impondo alguma coisa. Para o público de hoje, histórias sobre mulheres podem ser tão divertidas e interessantes quanto histórias sobre homens. E levou um tempo extraordinariamente longo para isso acontecer.
Por quê? Creio que parte disso se deve apenas à evolução natural. Antigamente, a maioria das peças, filmes e livros era sobre homens, porque os homens eram os únicos no mundo a fazer coisas. As mulheres estavam em casa. Isso mudou nos últimos 100 anos. Mas demorou muito para recuperarmos o atraso.
Tem algo que a faz se identificar com Deborah — ou que a afasta dela? Adoro seu senso de humor, mas não consigo entender sua raiva e amargura. Ela carrega ressentimentos por anos. E com isso eu não me identifico, deve ser um fardo terrível.
Publicado em VEJA de 11 de abril de 2025, edição nº 2939