Recentemente, conheci o Museu das Favelas, no centro de São Paulo – que, aliás, vale a visita. Mais do que um passeio interessante, o museu chama a atenção para a necessidade de tirarmos da invisibilidade esses lugares, que costumam aparecem no noticiário na maioria das vezes por conta de tiroteios ou operações policiais. A potência das favelas ou mesmo a cobrança de políticas públicas voltadas para essas áreas são frequentemente deixadas de lado, como se esses territórios simplesmente não existissem.
Divulgado no final de 2024, o Censo 2022 mostra, com números expressivos, que as favelas não podem ser ignoradas. O Brasil tem hoje 12.348 favelas e comunidades urbanas, onde vivem mais de 16 milhões de pessoas, quase o dobro da população de países como Grécia e Portugal.
Apesar de o Censo não fazer distinção entre esses lugares, nessa conta há “favelas” e “favelas”. “O imaginário coletivo sobre pobreza e vulnerabilidade do país ainda precisa equacionar as profundezas do problema, para escancarar as mais dramáticas situações e iluminar potências”, diz Camila Jordan, diretora de relações institucionais e incidência da ONG Teto Brasil, em entrevista à coluna. Segundo ela, ainda não há um mapeamento exato do número ou percentual de favelas no país que se encontram em condições de extrema vulnerabilidade, com moradias construídas com restos de madeira, sucata, lona – o que se consegue de material – muitas vezes, sem janela, com chão de terra.
Inédito, o estudo Panorama das favelas e comunidades invisibilizadas no estado de São Paulo, lançado em outubro de 2024 pela Teto Brasil, em parceria com o Insper e com a empresa de consultoria Diagonal, traça um retrato desses territórios hipervulnerabilizados, marcados pela precariedade estrutural e pela ausência total de direitos básicos.
O levantamento foi realizado a partir de dados primários coletados pelo voluntariado da Teto em nove comunidades do estado de São Paulo, entre 2019 e 2023. Os resultados mostram uma situação dramática, invisível para a maioria da população e para o poder público. Uma realidade que, segundo a especialista, também é comum a outros estados, embora em formatos e escalas diferentes.
Quase metade (43%) das moradias nesses territórios são de madeira ou sucata e em 20% delas os pisos são de terra ou madeira. A maioria das casas (69%) enfrenta problemas como frio ou calor excessivos, entrada de roedores ou insetos, infiltração de água e umidade, que trazem diversos riscos à saúde.
SÓ 30% DOS MORADORES TÊM ACESSO REGULAR À ÁGUA E À ENERGIA ELÉTRICA
O acesso às redes formais de saneamento e eletricidade alcança apenas 30% dos moradores destes territórios. Sete a cada dez domicílios não possuem acesso regular à água e à energia elétrica. Apenas um a cada cinco descarta esgoto na rede pública.
Além disso, essas favelas e comunidades são marcadas por rendas baixíssimas, pouco acesso à educação básica e quase nenhum ingresso ao ensino superior (apenas 1 a cada 160 pessoas tem ensino superior completo, menos de 1% da população).
Um cenário com impactos ainda mais devastadores com a crise climática. “A falta de infraestrutura física e socioeconômica agrava a situação, expondo os moradores a riscos mais frequentes e reduzindo as capacidades locais de resistência e adaptação”, ressalta Jordan.
Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgado na semana passada apontou para os prejuízos dos eventos climáticos na educação. Para se ter uma ideia, no Brasil, pelo menos 1,17 milhão de meninas e meninos tiveram os estudos interrompidos em 2024 por eventos climáticos, em especial enchentes e seca. Os prejuízos em outras áreas não foram contabilizados.
Segundo a diretora de relações institucionais e incidência da ONG Teto Brasil, as políticas públicas voltadas para esses territórios são insuficientes ou ineficazes. “Faltam dados, conhecimento territorial e ações coordenadas com precisão. As soluções emergenciais, que surgem após grandes tragédias, não resolvem o problema de longo prazo”, diz ela.
Jordan comemora, no entanto, a criação da Secretaria Nacional de Periferias, em abril de 2023, ligada ao Ministério das Cidades. Pela primeira vez, o governo federal estabeleceu uma secretaria dedicada especificamente às necessidades das periferias urbanas.
Os desafios, no entanto, ainda são muitos. A existência de um órgão central é importante, mas não basta. Segundo a especialista, é preciso integrar essas políticas nas nossas cidades.
Para enfrentar essa realidade de forma efetiva, são essenciais investimentos massivos em políticas públicas participativas pautadas em dados concretos, que reflitam as necessidades reais das populações das favelas mais invisibilizadas.
“Não existem futuros possíveis que não passem pelas favelas, por suas manifestações culturais e pela potência dos que ali resistem, inovam e criam”, lembra o Manifesto do Museu das Favelas. Para tornar esses futuros possíveis, falta ainda o poder público reconhecer e trabalhar por isso em todos os níveis, com políticas integradas e transversais, com o objetivo de reduzir as desigualdades nas cidades.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.