Doutura em Literatura Comparada, professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da AIL (Associação Internacional dos Lusitanistas), Sabrina Sedlmayer decidiu explorar em pesquisas o orgulho brasileiro por gambiarras. Em seu novo livro, Quem não tem cão caça com gato: estudando a gambiarra (Ed. UFRJ), Sabrina propõe como esse “jeitinho” é visto na vida cotidiana, na literatura, na cultura e nas artes visuais. Em conversa com a coluna GENTE, a autora exemplifica como a gambiarra é atrelada às classes sociais mais baixas, reflexo de uma desigualdade social oriunda do capitalismo, da corrupção e da postura despreocupada do brasileiro em geral.
De onde surgiu o conceito de gambiarra? Não sei se podemos falar propriamente de um “conceito”, de uma ideia que organiza, interpreta e representa a experiência humana. Defendo que a gambiarra surge dentro do capitalismo, devido à proliferação das mercadorias e dos seus modos bulímicos de produção material e de circulação. Há uma relação estreita com a eletricidade nos centros urbanos – o “gato” vem justamente daí. Os ricos tinham a opção de ter luz. Na favela do Canindé, onde morava Carolina Maria de Jesus, escritora sobre a qual dedico um capítulo no livro, não havia luz. A favela não pode ser vista como uma grande gambiarra? Não são improvisações? Não partem de produtos ofertados no mercado (alguns como lixo) e se tornam outra coisa?
O que é, afinal, uma gambiarra? Descobri que, mais do que uma solução emergencial ou uma prática que busca meios indiretos e desvios para sanar um problema, a gambiarra se apresenta como uma potência criativa que se estende além das improvisações do cotidiano. É também um recurso de subsistência, um quebra-galho em um mundo absurdamente desigual em termos econômicos – um remendo, uma cicatriz que expõe como muitos de nós, oriundos do Atlântico Sul, não temos acesso à tecnologia, a projetos, e precisamos nos virar com o que temos em mãos. No livro, há uma espécie de verbete reunindo inúmeras definições que coletei ao longo dos ano, desde alternativas sem técnica, RTU (recurso tecnológico de urgência), reparo, gato, relação extraconjugal, bricolagem, recusa da obsolescência programada, até mais de cinco dezenas de significantes que desembocam no “se virar”. A gambiarra é uma tática dos pobres, retomando aqui a leitura extraordinária que Michel de Certeau fez, certa vez, sobre a invenção do cotidiano.
Como a gambiarra reflete o “jeitinho brasileiro”, passado muitas vezes por cima da ética e da moral? A gambiarra tem o poder do drible. É astuta e demonstra resistência. Me incomoda bastante a atitude despreocupada com que a cultura brasileira é reduzida à cordialidade e à alegria. Trata-se de uma mitologização que precisa ser desconstruída – a ideia de que somos melhores do que a Nasa… Há páginas na internet com milhões de imagens de gambiarras sugerindo o quanto somos inventivos. Perdemos de 7 a 1 para a Alemanha, na Copa, e, em segundos, surgem memes, e rimos da nossa derrota. A incrível Fernanda Torres não ganha o Oscar de melhor atriz e, em menos de um segundo, aparecem memes zombando da protagonista de Anora. E rimos. Por que o “jeitinho brasileiro” não suporta o luto? Por que acreditar que tirar vantagem nas mais diversas situações é algo positivo?
O que acha dessa postura? Com certeza, me oponho a essa postura. E sou criticada por insistirem nessa construção da identidade nacional baseada na alegria. Este é um dos lados da gambiarra: a ilegalidade. Mas essa ilegalidade não revela também o fracasso do processo modernizador e da desigualdade social? Nem toda gambiarra é tosca, assim como nem toda gambiarra é antiética. Muitas vezes, ela é a única alternativa possível diante das adversidades e das urgências.
Como isso define a nossa identidade e, por conseguinte, nossas manifestações culturais? A arte contemporânea brasileira, o cinema, o teatro e outras expressões culturais exibem uma linguagem imagética capaz de interrogar, com densidade, as formas de sobrevivência no Brasil. É possível localizar novos arranjos formais com um acento brasileiro. Pensamento, criação e reflexão no uso dos materiais das suas obras. A produção cultural é inseparável da politica e da história.
Você enxerga a gambiarra como algo negativo ou positivo? Como pode ser consultado no livro, desde o capítulo inicial, mostro como há uma ambiguidade que deve ser recuperada na gambiarra: ao mesmo tempo em que se trata de uma apropriação criativa – modos singulares de se relacionar com os objetos, alternando suas finalidades e funções, capazes de revelar uma potência cognitiva poderosa no mais banal cotidiano –, no campo da literatura e das artes, ela não é exemplo apenas da malandragem e da tunga brasileiras. A gambiarra exibe a fome, a precariedade, a escassez.
Por que a gambiarra estaria atrelada a fatores sociais? Porque os vencidos, os dominados, têm que substituir a técnica, a tecnologia e os produtos por soluções não convencionais. Logo, inventam a vida cotidiana. Resistem e tentam sobreviver. Com isso, também demonstram o fracasso do processo modernizador e do estado de bem-estar social.
Que tipo de gambiarra as classes sociais mais baixas são conhecidas por fazer? Veja o que os moradores em situação de rua vêm fazendo, principalmente desde a pandemia de Covid, com o carrinho de supermercado. Esse objeto se transformou em armário, casinha de cachorro, fogareiro… Se podemos imaginar que o “gato” foi uma das gambiarras mais populares, hoje vemos que a “rachadinha” dos políticos também parece ser uma prática que compactua com a ilegalidade. Logo, não sei se é possível considerar a “fraude” do wi-fi ou da luz como algo ligado apenas aos pobres. Se há um espírito de burla, falta de rigor, abuso, há, na gambiarra, também originalidade e experimentação formal. Essa hipótese sustenta todos os meus argumentos no meu livro.