O ambiente à meia-luz, sensual e purpurinado de uma boate erótica em nada se parece com o vestiário do local nos bastidores: por trás das cortinas, as belas dançarinas tiram pausas para descansar, jantar e se arrumar antes de partir em busca de novos clientes. Em um desses intervalos, Anora (Mikey Madison) — ou Ani, como ela prefere ser chamada — come sem glamour sua marmita quando o gerente pede que ela atenda a um cliente especial. A jovem é a única ali que fala um pouco de russo, aprendido com a avó imigrante, e o visitante quer conversar em sua língua natal. Assim acontece o primeiro encontro entre Ani e Ivan (Mark Eydelshteyn) no filme Anora (Estados Unidos, 2024), que entra em cartaz nos cinemas na quinta-feira 23. Filho de um oligarca e bilionário russo, o rapaz está de passagem por Nova York, onde esbanja sem pudores milhares de dólares. Ele se encanta com Ani e a contrata como namorada por uma semana. Ao fim do período, num momento impulsivo em Las Vegas, os dois pombinhos se casam. Seria o conto de fadas perfeito caso o filme bebesse das fantasias de um romance açucarado — mas, na obra do diretor americano Sean Baker, quem dá as cartas é a implacável vida real.
Vencedor da cobiçada Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, e nome fortíssimo para concorrer ao Oscar deste ano, Anora faz um mergulho afiado e irônico no universo das profissionais do sexo. Um ambiente já explorado por Baker em títulos como Projeto Flórida (2017) e Tangerina (2015): o primeiro segue uma garotinha esperta de 6 anos e sua mãe desempregada, que cede à prostituição para pagar as contas; o segundo é sobre garotas de programa trans em busca de vingança em pleno Natal. “Gosto de pessoas que se impõem e não abaixam a cabeça para quem se considera melhor do que elas”, disse o cineasta a VEJA (leia a entrevista abaixo). A partir de personagens marginalizados no século XXI, o nova-iorquino de 53 anos expõe temas como a crise econômica americana, o preconceito com pessoas de baixa renda e a velha hipocrisia dos moralistas.
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Ao usar a prostituição como gancho para iluminar dilemas sociais, Baker retoma uma antiga e profícua linhagem do cinema, que data da década de 1930, quando a Grande Depressão econômica e conflitos mundiais eram usados como as razões que levavam mulheres ao caminho da “vida fácil” na tela. Exemplos famosos disso são O Expresso de Shanghai, de 1932, com Marlene Dietrich, e a adaptação do clássico de época A Dama das Camélias, em 1936, com uma inesquecível Greta Garbo.
Nas décadas seguintes, a dita “profissão mais antiga do mundo” confirmou-se como tema fértil. O incomparável Noites de Cabíria (1957), do mestre italiano Federico Fellini e protagonizado por sua esposa, a atriz Giulietta Masina, ilustra o humanismo com que o cinema mirou muitas vezes o mundo da prostituição. No roteiro, uma garota de programa esperançosa vive sob as próprias regras em uma Roma pós-Segunda Guerra. Entre os anos 1960 e 1970, diante da revolução sexual e também da instabilidade social e política no mundo, os profissionais do sexo dominaram as telas com mais liberdade e menos julgamento. No franco-italiano A Bela da Tarde (1967), de Luis Buñuel, a dona de casa vivida por Catherine Deneuve busca prazer na prostituição. Já no curioso e ousado drama americano Perdidos na Noite (1969), ganhador do Oscar de melhor filme, um jovem caubói texano (Jon Voight) tenta ser michê em uma Nova York pouco receptiva.
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O diretor de Anora bebe diretamente dessa fase mais realista e com personagens complexos — mas teve a sacada de adicionar ao longa elementos pop que permearam o gênero mais recentemente, como o sucesso Uma Linda Mulher (1990), com Julia Roberts, e o musical Moulin Rouge (2001), estrelado por Nicole Kidman. Em ambos, cortesãs encontram no amor de um homem a chance de deixar o ofício para trás. Anora explora a mesma ideia — ou quase. “Ani se apaixonou não pelo rapaz, mas pelo estilo de vida que ele proporcionava”, disse a VEJA a atriz Mikey Madison, jogando a real sobre sua personagem.
Quando os pais de Ivan, na Rússia, descobrem sobre o casamento do filho com a dançarina, enviam capangas para obrigá-los a anular a união. Sean Baker então desvia a trama da violência óbvia para uma guinada cômica inesperada: Ani é impetuosa, ferina e boca-suja — e enfrenta os grandalhões. Não à toa, Mickey, aos 25 anos, ganhou fama e prestígio com o filme. “Foi um trabalho físico puxado”, conta. Ela aprendeu a dançar e conquistar clientes numa boate de verdade, ficando horas em pé de salto alto ao lado de strippers que colaboraram com a produção. Delas, ouviu dilemas sobre falta de direitos trabalhistas e pagamentos irrisórios, além de histórias de boas amizades e do inegável gosto advindo da liberdade. Em vez de um príncipe encantado, as bonequinhas de luxo querem respeito.
“Gosto de pessoas que se impõem”
O cineasta Sean Baker falou a VEJA sobre os bastidores de Anora e a arte de fazer filmes profundos, mas populares.
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Como nasceu a personagem Anora? Eu conheci profissionais do sexo em meus filmes anteriores e tive essa ideia de uma jovem stripper esperta e insubmissa. Gosto de pessoas que se impõem e não abaixam a cabeça para quem se considera melhor do que elas.
Seus filmes iluminam a vida de pessoas marginalizadas, mas sem pender para o melodrama — pelo contrário, são tramas divertidas e agitadas. Como encontrou esse ritmo? Cinema é entretenimento. Para contar uma história, é preciso prender a plateia. Pessoas marginalizadas são cheias de humor e carisma. Elas foram barradas de viver o sonho americano.
Como assim? Trata-se de imigrantes, de pessoas com um passado, um estigma, que precisam trabalhar na economia underground. São histórias muito interessantes e pouco contadas.
Anora lembra Uma Linda Mulher, mas da vida real. Tinha em mente esse paralelo? Na verdade, só percebi isso quando começaram as filmagens. A prostituta que se casa com o rico é o típico conto de fadas. Fico feliz com a comparação. É um filme clássico que pode ajudar a plateia a entender o meu. A primeira metade de Anora é isso, uma trama pop e açucarada — antes de encarar a realidade.
Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2025, edição nº 2927