A esquerda de hoje tem duas vertentes: a tradicional, que tem por foco os pobres, e a identitária, que tem por foco as minorias. Como a esquerda tradicional sempre incorporou e apoiou os movimentos pela emancipação dos direitos das minorias, muita gente acha que as duas vertentes têm os mesmos objetivos, variando apenas na ênfase, por assim dizer. É um erro grave de análise: a diferença é de natureza.
A esquerda tradicional é universalista, acredita que todos somos iguais, quer construir um futuro em que todos tenham os mesmos direitos. A identitária é particularista, supõe que as minorias são moralmente superiores à maioria, quer a vitória das primeiras e a submissão da última, quer revanche. São visões distintas e inconciliáveis.
A esquerda dominante hoje é a identitária: é ela que fala (grita) e impõe a agenda. Como tem fixação na virtude e na superioridade moral, é intolerante com qualquer conduta que seja ou pareça reprovável. O denuncismo — “a vítima tem sempre razão” (o que significa que o acusado é sempre culpado, mesmo sem provas) — é estimulado; a sentença é o linchamento público, imediato e implacável.
“De quebra, a turma cancela seus próprios integrantes, xinga o centro de fascista e ridiculariza evangélicos e ‘pobres de direita’ ”
São inúmeros os casos de pessoas que tiveram a vidas destruída por acusações que precisam ser investigadas com cuidado (até hoje o ex-ministro Silvio Almeida sequer foi ouvido no processo em que é acusado de assédio sexual, por exemplo), questões puramente morais ou por delito de opinião. A mais recente polêmica a mobilizar a esquerda foi (ainda é) o podcast em que a escritora Vanessa Barbara narra as consequências para ela de um episódio de traição ocorrido quinze anos atrás, e acusa seu então marido de ter tecido comentários misóginos sobre ela para uma dúzia de amigos cafajestes via e-mail. Todos os homens envolvidos foram imediatamente cancelados. Também cancelados foram os que manifestaram algum tipo de ponderação. Cancelantes e cancelados são todos de esquerda: cancelamento só funciona com quem está na bolha.
Algumas dessas discussões jamais deveriam estar no centro de qualquer debate público nacional. É curioso que os identitários de esquerda sejam mais puritanos e moralistas que os evangélicos de direita — mas não surpreende: ambos vêm dos Estados Unidos, a pátria do puritanismo. Mas a gente se pergunta o que as corajosas feministas dos anos 60 e 80, que tanto lutaram pela liberdade sexual, diriam a respeito das polêmicas da atualidade.
A esquerda identitária vocifera sobre coisas que só ela entende — patriarcado, pacto da branquitude, lugar de fala, apropriação cultural, microagressão, gaslighting, mansplaining, manterrupting, misoginia, homofobia, transfobia etc. — e fala muito pouco sobre o que realmente interessa aos pobres: rua sem bandido, casa para morar, comida barata, escola sem greve, hospital com remédio, esgoto, transporte rápido e seguro.
De quebra, cancela seus próprios integrantes, xinga o centro de fascista e ridiculariza evangélicos e “pobres de direita”. Mas não entende por que enfrenta tantas dificuldades. Se não conseguir se livrar do identitarismo, o futuro da esquerda é sombrio.
Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2025, edição nº 2929