Em duas semanas, o filme francês Emilia Pérez foi do mais indicado ao Oscar 2025 para o elefante na sala de Hollywood, manchado pelo ressurgimento de múltiplas falas preconceituosas da protagonista Karla Sofía Gascón, que já exigiu a expulsão de todos os muçulmanos da Espanha e ironizou a morte de George Floyd, homem assassinado pela polícia americana que abasteceu o movimento Black Lives Matter em 2020. Antes, o filme era favorito ao prêmio de melhor filme internacional, entre outras categorias. Hoje, o diretor Jacques Audiard já cortou laços publicamente com sua atriz e tenta, desesperadamente, não se afundar junto a ela.
Em 21 de janeiro, contudo, ambos estavam no Brasil para divulgar o filme, que chegou aos cinemas do país nesta quinta-feira, 6. Ainda em clima amigável, o par concedeu entrevistas a VEJA — e Jacques se defendeu das acusações de xenofobia e uso de inteligência artificial que já se viravam contra a obra. Além disso, derramou em elogios a atriz espanhola:
O que te interessa no drama criminal? Me interesso majoritariamente por filmes de gênero, é verdade. Porque para mim, o gênero — especialmente o gênero noir — é um pouco como uma caixa de ferramentas. Há várias delas nessa caixa, e você as utiliza para produzir formas que o espectador vai reconhecer imediatamente. A outra explicação talvez seja que meu amor pelo cinema foi se direcionando naturalmente para isso.
Há quem aprecie e quem critique as excentricidades de Emilia Pérez por considerá-las irônicas. Como se sente sobre esse ponto de vista? Eu não vejo onde está a ironia no filme — ou então, talvez não tenha a mesma definição. O que me levou a essa abordagem foi pensar no drama mexicano, que foi muito bem documentado, mas também no fato de que, depois de um tempo, o documentário não tem mais a mesma eficácia informativa. Me perguntei: “Não seria melhor buscá-la em outro lugar”? E entendi que, diante de uma tragédia, talvez escutemos melhor o que acontece se for cantado. Não vejo onde está a ironia ou o cinismo nisso. Para mim, o canto é uma forma de expressão.
Outro motivo de controvérsia é que nem o senhor, nem as três atrizes principais do filme são nativos do México. Qual foi a bússola utilizada para a escolha de elenco? Sim, só há uma atriz do filme que é realmente mexicana. Fiz muitos testes no México, mas, em determinado momento, eu realmente precisava de dinheiro.
Karla Sofía Gascón fez anotações no roteiro original que o levaram a alterar alguns pontos da trama. Quanto aprendeu sobre a transidentidade com ela? Karla Sofía foi minha professora, realmente. O que ela me mostrou foi simplesmente o quanto, para ela, a transição não é um problema. Entre todas as atrizes trans que vi para o filme, esse foi seu diferencial. A transição não era mais assunto central de sua vida. Ela era atriz antes e continuou a ser atriz depois. Ponto Final. Achei isso de uma fluidez impressionante, absolutamente admirável.
Emilia Pérez foi concebido como ópera antes de ser um filme. Por que a música sempre foi essencial à trama? A música toma um espaço cada vez mais importante nos filmes que faço. As canções oferecem uma comunicação mais rápida do que os métodos normais de um filme. O canto te toca imediatamente. Basta quatro notas de música e duas linhas de texto: pronto, está tudo entendido. É uma eficiência cardíaca veloz.
Em dois dias, provavelmente, você e o filme serão indicados ao Oscar. Como é para você esse frenesi? [Uiva] É maravilhoso.
Recentemente, o longa foi criticado pelo uso de inteligência artificial no tratamento de áudio. O quanto a ferramenta foi utilizada durante a pós? Muito, muito pouco. Não posso te dizer exatamente, porque é uma fase do trabalho da qual não participo diretamente. Só me passavam os resultados sem me inserirem no processo, mas acredito que a IA foi usada pouquíssimo. O resultado é o mesmo que aquele proporcionado por intervenções na voz que já existiam antes. Entre os novos e antigos métodos, não vejo diferença.
Por fim, as polêmicas têm se acumulado sobre Emilia Pérez de maneira impressionante. O senhor se considera um provocador intencional? Não, não sou provocador e não entendo como podem me ver desse jeito. É um qualificativo que não me serve. Por outro lado, acho que, quase sem querer, vou para temas que não são fáceis, que talvez sejam divisivos. Quando faço um filme sobre uma prisão na França com árabes e corsos, isso também é divisivo. Quando fiz Dheepan: O Refúgio (2015), sabia que o tema seria divisivo. É algo que me interessa cada vez mais.