Enquanto a população ainda tentava compreender a gravidade do SARS-CoV-2, vírus causador da covid-19, apesar dos casos e mortes, pesquisadores ao redor do mundo destrinchavam todas as informações disponíveis sobre o patógeno. As informações desembocavam na Organização Mundial da Saúde (OMS), que teve o papel crucial de coordenar as orientações iniciais que foram replicadas pelos países — em diferentes níveis de aceitação –.
Quem estava de fora mal podia imaginar que membros da entidade passavam horas analisando dados e elaborando estratégias para evitar mortes e sequelas que, até aquele momento, eram desconhecidas. O objetivo era salvar vidas. Eram tantas reuniões e discussões que alguns já nem sabiam qual era o dia da semana.
Tudo era colocado na balança no que diz respeito às recomendações. Houve acertos e erros. O uso de máscara poderia ter sido indicado antes para a população em geral. Mas como ficariam os profissionais de saúde na linha de frente, considerando que os insumos podiam ficar escassos? Foram decisões difíceis.
Faltaram máscaras, respiradores e vacinas principalmente para os países mais vulneráveis e menos favorecidos economicamente. Um continente, a África, viu as doses de imunizantes sendo compradas em quantidades excessivas pelos países mais ricos. Assim, o mundo teve a lição mais cruel sobre a inequidade, que não acabou com o fim da declaração de emergência em saúde pública global por covid.
Desde 11 de março, dia em que a declaração de pandemia para covid pela Organização Mundial da Saúde (OMS) completou cinco anos, VEJA publica a série “Covid, cinco anos. Os protagonistas da crise”, que conta os bastidores da emergência sanitária e traz as lembranças de quem sobreviveu ao vírus, trabalhou salvando vidas e lutou pela vacina.
No primeiro episódio, tivemos o relato da cirurgiã coloproctologista Angelita Habr-Gama, de 92 anos, que passou 52 dias internada na UTI e venceu o vírus. O segundo abordou as chegadas e partidas testemunhadas pelo pneumologista Artur Codeço, diretor médico de Cuidado Integrado Acessível do Einstein que atuou como referência técnica no hospital de campanha erguido no Estádio do Pacaembu, na cidade de São Paulo.
O terceiro teve o relato do infectologista Esper Kallás, atual diretor do Instituto Butantan que, no auge da pandemia, integrou o Centro de Contingência para o coronavírus do estado de São Paulo. No quarto, as considerações do hematologista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Dimas Covas sobre a alegria da possibilidade de proteger a população brasileira contra o vírus com a vacina, quando esteve à frente do Butantan. E, no quinto, a primeira pessoa vacinada no Brasil. Mulher, mãe, preta, enfermeira e com diagnóstico de diabetes 2 e hipertensão, Monica Calazans se tornou um símbolo de resistência contra o negacionismo.
No último episódio da série, a reportagem apresenta o relato da pediatra e sanitarista Mariângela Simão. Ex-presidente do Instituto Todos pela Saúde (ITpS) e atual secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, ela atuava como diretora-geral adjunta da Organização Mundial da Saúde para Acesso a Drogas, Vacinas e Fármacos quando o SARS-CoV-2, vírus causador da covid-19, eclodiu.
Em seu depoimento, falou sobre as desigualdades nas ofertas de vacinas e insumos, a necessidade de dar suporte aos países mais vulneráveis e relembrou as reuniões que ocorriam entre os especialistas às quintas-feiras à noite sobre a pandemia: “Parecia o apocalipse chegando. A gente ouvia os virologistas e parecia que o mundo ia acabar”.
A
quele primeiro ano da pandemia foi marcado por muitas incertezas e foram cometidos muitos erros. Ninguém sabia o que funcionava ou não e, até o primeiro semestre, tivemos a tentativa heroica de usar as evidências já conhecidas para os vírus. O cenário lembrava o começo da epidemia de aids, porque todo mundo conhecia alguém que tinha morrido de covid. O ano de 2020 foi caótico e só tivemos informação científica crível no meio do ano.
Com a pandemia, veio a noção de que as recomendações técnicas podem mudar e isso é necessário, principalmente com um patógeno novo. Houve a recomendação tardia do uso de máscara, por exemplo, mas, se recomendasse para a população, faltaria para os profissionais de saúde. Foi uma decisão determinada pela falta de insumo. Estava morando na Suíça e fechou tudo em 16 de março. Não tinha uma máscara à venda nem álcool em gel. O governo controlou e colocou nos hospitais.
Então, no comecinho era compreensível que o mundo cometesse erros. Depois, era inaceitável. Quando tem uma questão tão grave, como foi o vírus que pegou uma população sem imunidade, é importante a gente registrar os momentos e não se esquecer do que passou.
Fiquei na OMS por cinco anos e estava ligada aos equipamentos de proteção individual (EPIs) durante a pandemia. Se você tem um vírus de transmissão respiratória e ele está em fase aguda, sabemos que, ao diminuir a circulação de pessoas, reduzimos a circulação do vírus. Infelizmente, isso deixa marcas nas vidas das pessoas, que sofreram com o isolamento, problemas de saúde mental, desemprego. Só que a política pública não pode ser baseada em impressões individuais. A decisão precisa ser tomada a partir de informações baseadas em evidências e para salvar vidas.
A partir de abril de 2020, a OMS passou a coordenar uma coalizão de entidades, como a Gavi (aliança de vacinas). Todas as quintas-feiras à noite, tínhamos reuniões. Parecia o apocalipse chegando. A gente ouvia os virologistas e parecia que o mundo ia acabar. Até deixei de assistir a filmes de catástrofe. Eu acordava em uma segunda e já era outra, os dias passavam e a gente não via, não parávamos de trabalhar.
A chegada da vacina trouxe uma luz e é importante dizer que o que se fez na pandemia de covid não foi criar atalhos. As plataformas das vacinas já estavam feitas, as bases estavam prontas e ficaram lições de como acelerar os processos sem flexibilizar os controles de qualidade. Mas, ao mesmo tempo que foi um alento, foi desalento porque os países ricos tomaram conta das doses, comprando até mais que o necessário para a população.
Isso já tinha acontecido na pandemia de H1N1. O Brasil tem o Sistema Único de Saúde e tinha uma produção local. Mas, quando a vacina foi disponibilizada para os países subdesenvolvidos, tinha acabado a pandemia. Essa inequidade no acesso preocupa globalmente.
Sabemos, quem está mais afetado, precisa ter acesso a EPIs, máscaras, vacinas. Existe uma necessidade de solidariedade internacional com o acesso equitativo entendido como um tempo oportuno na hora que o país precisa e que isso pode ser feito com segurança. Os mais afetados devem ser atendidos primeiro. A gente não aprendeu isso com HIV nem com a covid.
É por isso que precisamos estar preparados e é preciso investir dinheiro. Precisa investir antes de ter o problema para ter a resposta adequada. Isso inclui treinar as pessoas para fazer teste diagnóstico e ter gente que faça sequenciamento genômico.
Ver países saindo de arranjos globais, como a OMS, é preocupante. É um espaço mediado que ajuda a definir recomendações baseadas na melhor evidência possível. Não podemos nos esquecer de que até as cadeias logísticas dos países estão interligadas.
Em uma pandemia, nenhum país é uma ilha. Ninguém está isolado e ninguém está protegido enquanto todos também não estiverem.