Mais de dez anos separam dois momentos que ficarão gravados como cicatrizes na história do futebol. Em agosto de 2014, o goleiro Aranha, do Santos, interrompeu a partida contra o Grêmio, em Porto Alegre, pela Copa do Brasil, para informar o juiz de que ouvira gritos racistas vindos das arquibancadas ocupadas pela torcida tricolor gaúcha. Na semana passada, durante confronto entre Cerro Porteño e Palmeiras, válido pela Libertadores Sub-20, no Paraguai, o jogador alviverde Luighi foi vítima de atos igualmente abjetos por parte de torcedores do time paraguaio, que na saída de campo o insultaram por causa da cor de sua pele e lançaram cusparadas, fazendo-o chorar.

Nos dois casos, as punições foram estendidas às agremiações dos agressores e aos estúpidos provocadores. O Grêmio foi eliminado da competição. O Cerro Porteño levou multa de 50 000 dólares, teve de fechar os portões para o público em seus jogos e será forçado a preparar campanhas antirracismo. Muito pouco, convenhamos, diante da gravidade do ocorrido. A exemplo do que aconteceu em ocasiões semelhantes, houve alguma reação, fez-se barulho, mas quase nada diante da urgência, dada a dimensão do problema. Em uma década, foi como se nada tivesse ocorrido, e o preconceito de cor, a chaga que mata o esporte e a sociedade, parece caminhar sempre à espreita, sem solução que o afaste de uma vez por todas. É o caso de perguntar: até quando?
A reação de Luighi, em lágrimas, depois do jogo, é marco da ignomínia, e precisa ser repetida à exaustão, de modo a não ser esquecida. Diante do microfone dos repórteres, ele foi rápido: “Vocês não vão me perguntar sobre o ato de racismo que ocorreu hoje comigo? É sério? Até quando vamos passar por isso? Me fala, até quando?”. Ele se dirigia aos jornalistas, mas estava na verdade bradando contra a sociedade por trás daquelas mãos estendidas para um comentário qualquer sobre a partida. Lembrou, de algum modo, postura semelhante do treinador italiano Carlo Ancelotti, que em maio de 2023 se recusou a falar do jogo entre Real Madrid e Valência, no estádio de Mestalla, para dar destaque ao tristemente famoso caso de racismo sofrido por Vinicius Jr. Na época, Ancelotti respondeu a uma repórter que havia feito uma pergunta sobre a derrota merengue com uma indagação: “Quer mesmo falar de futebol?”.

Não, não queremos falar de futebol. Houve respostas protocolares na direção correta, mas insuficientes. O Palmeiras emitiu nota oficial de apoio ao atleta. Companheiros postaram comentários nas redes sociais. Clubes rivais se manifestaram e até a Conmebol mostrou-se decepcionada, anunciando medidas disciplinares apropriadas. Quais, não se sabe. “É inadmissível que um jogador de futebol, por sua cor da pele, tenha que sair de campo chorando”, diz o antropólogo Thales Vieira, codiretor do Observatório da Branquitude. “Os responsáveis têm que ser punidos, os clubes, responsabilizados, e a Conmebol, ter atitude compatível com o crime.”
Deve-se, portanto, trabalhar com o racismo, de uma vez por todas, com a mesma seriedade, rigor e inteligência com que se enfrentou a questão dos hooligans da Inglaterra, nos anos 1980 e 1990, banindo os torcedores violentos, levando-os à cadeia. É fundamental, por óbvio, que tudo seja feito no âmbito da Justiça, com o devido direito de defesa. Mas é preciso ação firme e, nesse caminho, convém ressaltar a boa postura da presidente do Palmeiras, Leila Pereira, que exigiu severidade. “Nada muda apenas pela boa vontade, nenhuma cultura se transforma só no discurso”, disse a VEJA Aranha, hoje palestrante antirracista. “E o problema não está apenas no esporte.”

Eis um ponto central. Ainda que o futebol seja campo de fácil germinação para idiotices, palco para todo tipo de preconceito, é bom enxergá-lo como sintoma do que há ao redor, tecido pela leniência e corporativismo. “O modo como a Conmebol e outras federações e confederações administram essas situações é muito isolado das questões políticas que envolvem a discriminação e a violência racial”, diz Neilton Ferreira Júnior, organizador do livro Racismo e Esporte no Brasil. O futebol poderia começar a dar o exemplo de como é possível extirpar com atos concretos uma cultura odiosa que ainda tem voz nas arquibancadas. Vale repetir o apelo necessário de Luighi: “É sério? Até quando?”.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935