Lula costuma dizer que tem uma eterna gratidão pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, a quem conhece há quase cinquenta anos. Respeitado por juristas e políticos, Lewandowski ganhou pontos adicionais com o PT por uma série de decisões favoráveis ao partido nas quase duas décadas em que ocupou, por indicação de Lula, uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF): absolveu próceres da sigla no escândalo do mensalão, avalizou uma manobra que deu sobrevida política a Dilma Rousseff após o processo de impeachment e abriu caminho para que mensagens hackeadas da Lava-Jato reabilitassem o presidente na arena política. Por todo o histórico junto ao chefe do Executivo, com quem convive desde os tempos de São Bernardo do Campo, Lewandowski seria, em tese, um ministro indemissível. Em condições normais, caminharia sem maiores dificuldades até o fim do governo. Ele, no entanto, se tornou alvo de intrigas e assédio de um grupo político disposto a ocupar sua cadeira — incursão que envolve uma miríade de interesses.
Todo partido que pleiteia cargos de primeiro escalão geralmente o faz de olho em algum objetivo. Ministérios expressivos podem ampliar círculos de influência, permitir acesso a recursos que alimentam bases eleitorais, pavimentar carreiras para voos mais ambiciosos e outras coisas mais. Nos últimos meses, o União Brasil e o senador Davi Alcolumbre (AP), em particular, se empenham em convencer Lula da necessidade de mudar o comando da Justiça. O parlamentar fez chegar ao governo recados de que uma eventual mexida na pasta poderia ser benéfica para o presidente, que solidificaria alianças políticas fundamentais no Congresso. O senador amapaense tenta emplacar no cargo o colega Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Não é um lobby qualquer. Em fevereiro, se não ocorrer nenhuma reviravolta, Alcolumbre assumirá a presidência do Senado, justamente no lugar de seu fiel aliado, Pacheco — este, por sua vez, tem dito a pessoas próximas que uma mudança para a Esplanada não estaria em seus planos.
Do ponto de vista pragmático, o movimento de Alcolumbre tem um grande apelo. Lula precisa de maioria no Congresso para aprovar projetos importantes e se blindar de investigações consideradas inconvenientes. Sem uma base parlamentar sólida, o presidente administra desde o primeiro dia do mandato a instabilidade das legendas que lhe dão sustentação. Ele sabe que parte das siglas que atualmente apoiam o governo — União Brasil e PSD incluídas — são aliadas meramente circunstanciais. Com três pastas de primeiro escalão, o União, por exemplo, pode lançar à Presidência em 2026 o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, enquanto o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, é o nome preferido do mandachuva do PSD, Gilberto Kassab, para disputar o Palácio do Planalto na hipótese de o partido tirar no futuro um dos pés da canoa de Lula.
Assim, a eventual indicação de Rodrigo Pacheco atenderia a vários fins. Ajudaria Lula a conquistar a boa vontade do futuro presidente do Senado, agradaria ao PSD, que ampliaria ainda mais sua área de influência — o partido hoje comanda os ministérios de Minas e Energia, da Agricultura e da Pesca —, e serviria a alguns propósitos pontuais do União Brasil. Um deles, discutido abertamente nos bastidores, é colocar rédeas na Polícia Federal. Procurado, Davi Alcolumbre não se manifestou.
Subordinada ao Ministério da Justiça, a Polícia Federal, em tese, tem autonomia para conduzir suas investigações. Mas, para as lideranças do União Brasil — o senador Alcolumbre entre elas —, a corporação segue uma bússola política, escolhendo como alvos primordiais aqueles que representariam algum tipo de ameaça ao governo. O partido tem se mostrado extremamente incomodado com as investigações sobre desvios de recursos de emendas parlamentares. Numa das últimas operações, policiais investiram contra uma organização criminosa suspeita de ter movimentado quase 1,5 bilhão de reais em contratos fraudulentos. Um dos acusados, o empresário baiano Marcos Moura, é conhecido, entre outras coisas, pelo amplo networking no mundo político. É próximo de figurões da cúpula do Congresso e integra a executiva nacional do mesmo União Brasil. A apuração encontrou indícios de corrupção, peculato e lavagem de dinheiro e esbarrou no nome do deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA), até pouco tempo atrás o favorito para presidir a Câmara dos Deputados. Durante as buscas, um primo do parlamentar atirou uma sacola de dinheiro pela janela e um jato foi interceptado transportando 1,5 milhão de reais que seriam entregues ainda não se sabe a quem em Brasília. Os agentes também encontraram no telefone dos criminosos mensagens com menções a uma funcionária de Davi Alcolumbre — algo que, por si só, ainda não tem qualquer significado maior dentro da investigação. Por envolver autoridades, o inquérito está sob os cuidados do Supremo Tribunal Federal.
A independência da Polícia Federal é um mantra que costuma ser usado para blindar a instituição de acusações e suspeitas de ingerência política. O empenho dos presidentes da República em nomear pessoas de sua confiança para dirigir o órgão relativiza essa autonomia. Manobrar o ritmo e os rumos de um caso policial a partir do Ministério da Justiça também não é exatamente impossível. A burocracia, por exemplo, pode atrasar, agilizar ou mesmo inviabilizar uma investigação. A pasta é responsável, entre outras tarefas, por nomear superintendentes que chefiarão as equipes da PF nos estados, liberar dinheiro para as operações e autorizar ou vetar viagens de investigadores a serviço. A classe política sabe de cada uma dessas atribuições. Apenas no último ano, quatro nomes controversos foram sugeridos por deputados e senadores para comandar superintendências estaduais — todos acabaram descartados.
É nesse ponto, segundo auxiliares de Lewandowski, que se concentram os interesses políticos do União no cargo. “O Centrão quer a cadeira da Justiça porque lá existem mecanismos de controle da Polícia Federal”, ressalta, sob condição de anonimato, um auxiliar da pasta. “Se o ministro da Justiça não der apoio para a PF as coisas não andam. E eles sabem disso”, completa a mesma fonte. Diante da intensidade do assédio, assessores de Lewandowski elaboraram uma lista de episódios que mostram o nível da pressão. No rol, que será encaminhado ao presidente Lula, há relatos de abordagens pouco ou nada usuais de políticos advertindo auxiliares do ministro sobre problemas que o governo poderá enfrentar no Congresso caso ele seja mantido no cargo. Indiferente à fritura, mas atento à movimentação, Lewandowski tem dito que não pretende deixar o posto e que sua única preocupação é colocar de pé um plano eficaz de segurança pública, tema que aparece entre as principais inquietações dos brasileiros na atualidade. Na reunião ministerial da segunda-feira 20, um detalhe chamou a atenção dos observadores mais atentos. Na hora da fotografia oficial do encontro, percebendo que o ministro estava mais afastado, o presidente chamou Lewandowski para se posicionar próximo a ele na primeira fila de autoridades. A atitude foi interpretada como um sinal de prestígio.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2025, edição nº 2928