O primeiro-ministro Keir Starmer tomou uma atitude quase sem precedentes: mandou cancelar os vinte mil cartões de crédito dados pelo governo aos funcionários que precisam dele para fazer a máquina funcionar – mas também abusam, com gastos de fazer ferver o sangue dos contribuintes responsáveis pela conta.
Para reaver o cartão corporativo, cada funcionário público tem que se recadastrar, explicando por que precisa dele. Se não fizer isso, o cartão será cancelado.
É uma forma de cortar despesas, um objetivo do governo de centro-esquerda que parecia pertencer à categoria da boca para fora, mas tem mostrado alguns sinais de seriedade.
As despesas com o “cartão do governo” escaparam ao controle, especialmente depois da pandemia: foram de 155 milhões de libras (oito vezes mais em reais) no período 2020-2021 para mais de 675 milhões em 2024-2025.
O jornal Telegraph fez um levantamento de parte dessas despesas e, sem nenhuma surpresa, descobriu abusos que vão do excesso – 1 273 libras em cápsulas de Nespreso entre outubro e novembro passados, pelo próprio gabinete do primeiro-ministro – ao grotesco, como aluguel de vestido de festa, viagens a parques de aventura, equipamento para ginástica, contas de lavanderia, aulas de locução e até o aluguel de uma van de sorvete.
ESQUERDA DE DIREITA
“Não existe arte que um governo aprenda mais rapidamente com outro do que drenar dinheiro do bolso do povo”, escreveu Adam Smith há quase 250 anos, numa constatação que só foi sendo mais comprovada pelo teste do tempo.
O funcionalismo público britânico, chamado em inglês de Civil Service, praticamente formatou o modelo seguido em inúmeros países. Criou uma aura de eficiência e probidade, qualidades que hoje muitos hesitariam em associar a ele, embora a farra vista em terras menos britânicas não tenha comparação.
O atual governo, do Partido Trabalhista, quer mostrar que fala sério no quesito contas equilibradas. A ministra da Economia, Rachel Reeves, disse que o plano é cortar 15% dos gastos da máquina até o fim da década. Alguns dos cortes serão anunciados hoje. Na conta, entrariam dez mil postos de trabalho no funcionalismo – num total de 546 mil – , cujas atividades seriam equilibradas por avanços tecnológicos e inteligência artificial.
Os cortes de gastos já foram identificados, com bastantes exagero, como uma tendência de direita num governo de esquerda – uma espécie de versão bem amenizada do que Elon Musk está tentando fazer nos Estados Unidos.
Outro desses sinais: a revisão nos benefícios previdenciários por incapacidade, mirando abusos e fraudes.
INSTINTO DE PRESERVAÇÃO
“Queremos colocar mais dinheiro em coisas que são mais importantes para os cidadãos e menos dinheiro em coisas que são menos necessárias ou que poderíamos estar fazendo de modo diferente”, disse a ministra.
Atenção: ela não é nenhuma liberal e sua política de aumento de impostos é continuamente acusada de ser devastadora para a economia, afetando brutalmente pessoas físicas e empresas.
Nada surpreendentemente, os cortes de despesas são criticados dentro do próprio Partido Trabalhista e, evidentemente, não deixam os conservadores nada tranquilos por considerarem seu escopo reduzido.
Mas não deixam de ser um sinal interessante de que Keir Starmer quer ser um chefe de governo que segue os princípios da responsabilidade, um conceito que tem dado certo na Espanha do primeiro-ministro Pedro Sánchez, apesar do desgaste natural do poder.
Ou pelo menos faz uma boa imitação disso.