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Somos todos marubos

“Os jovens ficaram preguiçosos”, diz Tsainama Marubo, da tribo com o mesmo nome, nas profundezas da Amazônia. A culpa é da internet. Quem colocou o sinal lá foi a Starlink, do Elon Musk. Mérito para ele. Conectou a Amazônia. Ajudou centenas de comunidades a terem acesso rápido a socorro e a bens que nunca poderiam imaginar. Mas há uma montanha de consequências não intencionais aí. O The New York Times fez uma matéria sobre isso na tribo dos marubos. Ela conta sobre jovens indígenas que agora passam horas grudados nos celulares e não se interessam mais em fazer tintas e colares. Querem saber é da cultura de fora. Também perderam o interesse na caça e no cultivo. E, mesmo em uma reunião da tribo, é no Instagram que boa parte está ligada. Me chamou a atenção a frase: “Quando a internet chegou, todos ficaram felizes, mas agora as coisas pioraram”.

O que se passou com os marubos, em poucas semanas, vem se passando à nossa volta nas últimas décadas. Ainda me lembro da euforia com as infinitas possibilidades da era digital em algum momento dos anos 1990. A ideia de aproximar as pessoas, diluir diferenças, criar finalmente uma “sociedade civil mundial”, como tantas vezes escutei. Hoje sabemos que tudo isso se perdeu. Nos tornamos todos um pouco marubos, quem sabe sem perceber. Quem trata disso é Jonathan Haidt em seu lindíssimo livro A Geração Ansiosa. Os casos de depressão entre adolescentes cresceram 161% (meninos) e 135% (meninas) desde 2010. Casos de automutilação aumentaram 188% entre adolescentes nos Estados Unidos.

Alguma coisa efetivamente pesada aconteceu no planeta por volta de 2010, quando surgiu o Instagram, as redes explodiram e os smartphones inundaram o mercado. Resultado: entre 2012 e 2019, caiu de 122 para 67 minutos por dia o tempo de convivência com os amigos, entre adolescentes americanos. A vida digital vem acompanhada da solidão. Disso e do efeito comparação. A dependência dos likes, o bullying digital e toda a sorte de bizarrices. Histórias como a de Alexis Spence, uma jovem americana que abriu sua conta no Instagram com 11 anos, mergulhou em um mundo infernal e até hoje se recupera de surtos de depressão e anorexia. Este debate veio à tona, por estas semanas, com o sucesso de Adolescência. O que ocorre com Jamie, o garoto de 13 anos, personagem central da série, é exatamente isso. Ele sofre bullying digital por parte de Katie, sua colega, e ingressa em uma espiral de vergonha e ódio. E a partir daí surge a violência extrema e sem reparação.

Minha provocação é a seguinte: a série não diz apenas respeito à adolescência. Ela diz respeito à enrascada em que todos nos metemos. O mundo digital é ótimo e traz uma montanha de possibilidades. Mas é um universo de baixa empatia. Foi isso que levou à tragédia de Jamie e Katie. E a de Alexis, no mundo real. Para quem tem um gosto filosófico, digo que isso vem de um traço da natureza humana. Basta alguns metros de distância, e a capacidade de nos importarmos com os outros dança, solenemente. Quem duvidar disso, dê uma olhada nas barras de comentários na internet. Desconfio que, se houvesse um botão em que se pudesse simplesmente eliminar pessoas (não estou dando ideias, por favor), é de duvidar que, ao final de duas ou três semanas, sobraria muita gente no planeta. E aqui volta o ponto de Haidt: de algum modo se espera que os adultos saibam se virar com isso (o que nem sempre é verdade), diferentemente do que se passa com quem tem 12 ou 14 anos.

Haidt evita cair na retórica fácil de que a regulação das redes evitará discursos de ódio e fake news. E com isso resolver o problema. Seu tema é “design” das plataformas, não tanto seu conteúdo. Ele conta que já questionou Zuckerberg sobre medidas mais duras para conferir a idade de quem abre uma conta no Facebook ou no Instagram. E acha que a idade mínima para isso deveria ser de 16 anos. Redes sociais são uma das tantas áreas em que a simples competição de mercado não vai levar aos melhores resultados. Zuckerberg pode endurecer as políticas de checagem de idade, mas quem garante que o TikTok e outras redes farão a mesma coisa? Então é preciso haver regras. A proibição dos celulares nas escolas é um bom exemplo. Parece autoritário, mas na verdade é o contrário. Autoritário é dar um truque: sob o argumento de “proteger” quem quer que seja, ir censurando esse ou aquele conteúdo, como tantas vezes se vê por aí.

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“É preciso revalorizar a cultura dos encontros reais, longe das telas”

O ponto é que nenhuma regulação sozinha resolve o problema. O que Haidt sugere é uma mudança cultural. Na prática um alerta: “Será que nos tornamos todos imbecis, e ninguém está percebendo o que anda acontecendo?”. Seu ponto é o mesmo observado pela doutora Ana Lembke, em Nação Dopamina: as redes têm um enorme poder para produzir dependência. Elas ativam os mesmos circuitos que o álcool e outras drogas. Nos oferecem uma troca intertemporal: pequenas doses de prazer, em regra inúteis, em troca de focar naquilo que é significativo, em um prazo mais longo. Como li de um especialista, tempos atrás, ninguém acorda pela manhã e pensa: meu plano hoje é ficar três ou cinco horas nas redes sociais. Somos apenas tragados. E não por culpa desse ou daquele bilionário californiano. Mas pela maneira como resolvemos lidar com a tecnologia. E é aí que Haidt faz um certo apelo espiritual. Uma saída estoica, diria: a retomada do controle. Me lembrou o Encheirídion de Epicteto. Uma espécie de manual sobre como levar a vida em meio à tempestade. Na prática, reconhecer que há coisas que controlamos — nosso espírito, nossas escolhas cotidianas, nosso bom ou mau humor diante das coisas. E que há uma montanha de fatos sobre os quais simplesmente não temos ingerência. E que não passa de uma tolice nos abalarmos muito com isso. Não controlamos o modo como nossos vizinhos exibem suas vidas (por vezes falsas) de sucesso nem como o mundo lida com o aquecimento global. E tampouco controlamos o que os outros pensam de nós. Mas ainda podemos controlar a nossa mente. Vem daí o fascínio estoico pela meditação. Pela ataraxia, ou a calma do espírito. O afastamento deliberado da agitação vazia dos dias. Tudo para que cada um possa recuperar o controle sobre si mesmo. E fazer disso o que achar que deva fazer.

É evidente que não é fácil explicar tudo isso para um pré-adolescente que acabou de mergulhar na tempestade. No desenho feito pela jovem Alexis, então com 12 anos, meses após entrar nas redes, surgiam de dentro de um computador palavras como “gorda, vaca, feia, retardada, ninguém te ama, se mata”. Não há muito o que fazer sobre isso. Somos nós mesmos e nossa natureza precária, agora com um poder imenso nas mãos. E é por isso que é preciso agir. Coisas chatas, como cortar o celular nas salas de aula, ou proibir o uso de redes até os 14 ou 16. E coisas interessantes, como revalorizar uma cultura de encontros reais, longe de telas. E quem sabe até uma certa disciplina para “odiar menos, perdoar mais”, como sugere Haidt. Com certa ingenuidade, mas um inegável sentido de urgência.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938

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