Como equilibrar um dos fundamentos da justiça social, que é o pagamento de benefícios para incapacitados, e o controle dos abusos do sistema? O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, vai tentar uma proposta hoje rejeitada por uma grande ala de seus próprio partido, o trabalhista, para consertar distorções “indefensáveis, economicamente e moralmente”.
São palavras duras para um político de esquerda, ainda mais um proveniente do PT original. A ideia é uma reforma que filtre mais e reavalie os beneficiados com maior frequência. Poderiam ser afetados pagamentos no total de 6 bilhões de libras.
Seja qual for a tendência política, todos os governantes de países com algum sistema de bem-estar social enfrentam o mesmo problema, os pagamentos indevidos aos aproveitadores que aumentam uma conta já alta e, em muitos casos, insustentável.
Cortar benefícios é duro para qualquer político, mas é pior para o país ficar com contas descompensadas, como sabem os governantes responsáveis.
A tática é começar pelos que se beneficiam indevidamente, um fenômeno disseminado no Reino Unido, onde alegar problemas de transtornos mentais como depressão, agorafobia e até urinar na cama virou uma prática em ascensão. Outros motivos, embora menos frequentes: acne, constipação e intolerância alimentar.
Os mecanismos de controle dos benefícios são fracos e é possível que a geração jovem, sob influência de celebridades que constantemente declaram problemas similares, seja mais sensível.
CARRO DE GRAÇA
Socialmente, também é mais aceitável – e, no extremo, até desejável – ter algum “problema”. Transtornos como o déficit de atenção, diagnosticados apenas pela declaração de sintomas, podem ser exagerados com facilidade.
Se redundarem no pagamento de benefícios por incapacidade, temporária ou permanente, tornam-se generalizados.
Uma pesquisa recente mostra que quatro em cada dez jovens britânicos de 18 a 24 anos pensam em simplesmente deixar de trabalhar. Nessa faixa etária, existe uma probabilidade 40% maior de invocação de transtornos mentais para conseguir benefícios por incapacidade.
E existem os aproveitadores escancarados. Influenciadores do TikTok dão o caminho a ser seguido, não só para conseguir benefícios, começando em 9,6 mil libras por ano (oito vezes em reais), como explorar o sistema de maneiras mais sofisticadas. Usando uma balaclava vermelha, um desses influenciadores mostra como conseguir um carro novinho através do programa criado para promover a mobilidade de incapacitados. Como não existem carros “de graça”, como alega o mascarado, quem paga são os contribuintes.
A pandemia também reforçou a ideia de que dá para ficar em casa e receber um dinheiro “do governo”. As perícias presenciais simplesmente desapareceram e não voltaram mais. Hoje, quase 400 pessoas por dia pedem o benefício por transtornos mentais. No ano fiscal de 2023/2024, foram 145 mil processos desse tipo. O último número antes da pandemia havia sido de 47 mil.
‘STRESS NORMAL’
Disse o parlamentar conservador Robert Jenrick: “Os números são escandalosos. Se não tivermos regras mais estritas de elegibilidade, a conta vai continuar a crescer, os impostos continuarão dolorosamente altos e o crescimento continuará estagnado. A medicalização do stress normal tem que acabar”.
O que é o “stress normal” e o que é um transtorno comprovado idealmente seriam definidos por um sistema à prova de fraudes, mas a realidade é diferente, criando fenômenos como as localidades onde até mais da metade da força de trabalho recebe benefícios por diferentes motivos. De 2019 a hoje, o número na Inglaterra saltou de 2,8 milhões para 4 milhões de beneficiados. A grande quantidade de jovens ociosos, “pendurados” no sistema de segurança social, cria quadros deprimentes – uma espécie de círculo vicioso em que a alegação de transtornos mentais se torna uma profecia autorrealizável.
O transtorno misto de depressão e ansiedade é o motivo mais alegado para conseguir o benefício por problemas mentais. Cerca de 800 mil pessoas recebem benefícios por essa razão. Urinar na cama pode fazer parte desse quadro ou de algum outro transtorno? É possível, como também é possível que seja um pretexto útil aos aproveitadores.
Keir Starmer não tem a solução para isso, mas o simples fato de que esteja abordando o problema já é um sinal de seu tamanho.