E se um dos horrores do século XX tiver começado de uma rejeição? Antes de entrar na política, Adolf Hitler pintou naturezas, pálidas e sem graça, pastiches do neoimpressionismo. Ele foi duas vezes rejeitado para uma cadeira na Academia de Belas Artes de Viena. Em 1935, já como premiê da Alemanha, resumiria a uma multidão em Nuremberg o que pensava do papel da criação artística, de olho a um só tempo no futuro de suas ideias e na desconsideração de seu trabalho no passado: “Não é missão da arte chafurdar-se na imundície pela imundície, pintar o ser humano apenas em estado de putrefação, desenhar cretinos como símbolos da paternidade ou apresentar idiotas deformados como representantes da força viril”.

Tanta estupidez seria depois estampada como dístico numa das paredes de uma exposição em Munique que faria história pela porta dos fundos: a mostra de “arte degenerada”, inaugurada em julho de 1937, a Entartete Kunst, na expressão em alemão. Naquela antologia, cerca de 600 trabalhos exibiam o que os nazistas consideravam lixo. Eram obras preferencialmente de judeus e comunistas, de pioneiros do abstracionismo e dos expressionistas do movimento Die Brücke (A Ponte). Era infame — e, infelizmente, fez imenso sucesso de público e crítica. Mais de 2 milhões de pessoas circularam entre as salas e os corredores em meio a telas expostas de maneira torta e luzes inadequadas, em iniciativa que viajaria por outras cidades, ganhando com o passar do tempo novos exemplares. O conceito de “degenerescência” foi emprestado da história natural, ao designar seres da fauna e da flora modificados pelo acasalamento, impuros. Defendia-se, enfim, a pureza da arte como quem bradava pela raça ariana.
E se fosse possível testar, hoje, as reações do mundo a uma antologia como a proposta por Hitler e sua turma? Eis a ideia de L’Art Dégénéré — Le Procès de L’Art Moderne sous le Nazisme (A Arte Degenerada — O Processo da Arte Moderna durante o Nazismo), no Museu Picasso, em Paris, até 25 de maio. Destacam-se, entre 57 obras de 37 artistas, trabalhos de George Grosz (Metrópolis, de 1916, alegoria do caos urbano), Pablo Picasso (com uma mulher nua cutucando o pé esquerdo, de 1921) e Kandinsky (uma abstração geométrica em forma de cruz, de 1926). Há ainda Marc Chagall, Paul Klee e esculturas de Emy Roeder. As peças fazem parte do acervo de museus europeus, inclusive o Picasso — lá reunidas, agora, não pela degeneração, evidentemente não, mas para provocar incômodo ao levar os visitantes ao chumbo dos anos 1930 e início dos 1940. Descobre-se que os nazistas tinham bom gosto — mas ao avesso, por ideologia.

O resultado, em 2025, é a condenação do absurdo, não há dúvida. É um modo de denunciar aquele episódio inaceitável, símbolo de um tempo que não pode mais voltar. É incômodo, também, ver a exposição parisiense — a primeira do gênero em um país em permanente desconforto com o período do colaboracionismo com Hitler, na chamada República de Vichy — em tempo de retomada de gestos nazistas, como os insinuados recentemente por Elon Musk e Steve Bannon, antigo conselheiro de Donald Trump, e de crescimento da extrema direita na eleição legislativa da Alemanha.

É difícil que aquela desventura renasça, mas é sempre bom iluminá-la para que não se repita. E é bom estar atento a posturas inaceitáveis, como a de apontar o dedo para a arte que pode ser aceita e a que deve ser rechaçada. As telas e esculturas “degeneradas” expostas nas pequenas salas do Museu Picasso escancaram esse tipo de autoritarismo, ao revelar a capacidade humana de errar. Vale lembrar uma frase do pintor polonês Jankel Adler, do tempo em que Munique serviu de palco para o abominável: “Estamos sendo confrontados com o perigo iminente da destruição de toda liberdade”. Estava certo.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935