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Aos 95, Fernanda Montenegro mostra sua fibra em Vitória e outros projetos

Após uma caminhada rotineira — com certa dificuldade por causa da idade — pelas ruas de Copacabana, no Rio, a octogenária dona Nina senta-se em sua cozinha, bebe um café e come biscoitos. Mas a paz é interrompida por um tiroteio na frente de sua casa. Mais tarde, outros disparos a obrigam a se jogar no piso da sala com medo. Na noite seguinte, uma bala atinge a parede de seu apartamento de um quarto, localizado em frente à Ladeira dos Tabajaras, onde o tráfico e o consumo de drogas são vistos à luz do dia, com anuência de policiais milicianos. O dramático cotidiano real de Joana Zeferino da Paz (1925-2023), alagoana que desmantelou uma organização criminosa e ajudou a mandar trinta bandidos para a cadeia, agora ganha tons comoventes no filme Vitória, em cartaz nos cinemas — no qual a corajosa cidadã é interpretada com maestria por Fernanda Montenegro. Aos 95 anos, a atriz prova sua força mais uma vez ao encarar o papel da velhinha solitária que se torna uma leoa disposta a combater traficantes armados e policiais corruptos sem perder o bom humor.

Uma história verídica tão potente é obviamente talhada para virar filme. Vitória, entretanto, enfrentou um caminho tortuoso. Em abril de 2018, o cineasta Breno Silveira anunciou a produção baseada nas investigações do repórter Fábio Gusmão no jornal Extra sobre o caso, já com Fernanda definida no papel principal. Só que as filmagens foram paralisadas logo de início pela pandemia. Quatro anos adiante, Fernanda fraturou três costelas num acidente doméstico, atrasando o cronograma de novo. Em seguida, uma tragédia abalou a produção: Silveira teve um infarto fulminante e morreu no primeiro dia de filmagem. Andrucha Waddington, amigo do diretor e genro de Fernanda (ele é casado com Fernanda Torres), assumiu o leme a pedido da viúva de Breno, Paula Fiuza, roteirista do longa.

TRIBUTO - Andrucha (em pé) e a atriz: diretor assumiu filme após morte de amigo
TRIBUTO - Andrucha (em pé) e a atriz: diretor assumiu filme após morte de amigoSuzanna Tierie/Globoplay/.

Se tudo jogava contra o filme, sua protagonista, como de praxe, revelou-se uma fortaleza capaz de fazer valer o projeto. Assim como em Ainda Estou Aqui, no qual faz a versão anciã e atingida pelo Alzheimer da mesma Eunice Paiva que rendeu a indicação ao Oscar à filha, Fernandona exibe no novo trabalho uma qualidade que poucos se deram conta: a disposição em retratar a velhice — condição na qual se inclui — em todas as suas nuances, da fragilidade física e mental à coragem muitas vezes heroica na idade avançada. É uma contribuição e tanto na evolução de personagens assim. A dona Nina de Vitória é exemplo disso: após se cansar de reclamar à polícia, que não fazia nada, ela compra uma câmera e registra as atividades dos traficantes, viciados e policiais aceitando propina. Leva um saco de fitas de vídeo às autoridades, mas o caso só é levado a sério por um repórter policial que sente o potencial de uma matéria de capa. “Fernanda é uma operária da arte”, disse Waddington a VEJA.

Na vida da Joana da Paz real, foram dois anos para publicá-la por se temer pela vida da idosa, risco só superado quando ela entrou no programa de proteção a testemunhas e ganhou o nome de Vitória nos jornais — até sua morte, em 2023, aos 97 anos, trazer à luz sua verdadeira identidade. Em uma discussão descabida na internet, houve quem criticasse a escalação de Fernanda por ela ser branca, já que Joana era negra. Porém, desde a primeira negociação da produtora Conspiração, a própria idosa havia manifestado o desejo de ser vivida por Fernanda. Para conforto dos militantes, Fábio Gusmão, branco, é vivido por Alan Rocha, ator negro que sustenta uma química avassaladora com a veterana como o repórter Flávio Godoy.

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DONA DO PALCO - A veterana em leitura de Beauvoir: longe da aposentadoria
DONA DO PALCO - A veterana em leitura de Beauvoir: longe da aposentadoriaMatheus José Maria/.

Fernanda Montenegro ameaça, mas não para. Na pré-es­treia de Vitória no Theatro Municipal de São Paulo, na última segunda, 10, ela deu a entender que não fará mais filmes. “Cinema pede físico, pede fôlego”, admitiu. Mas sinaliza que manterá outras formas de atuar. Recentemente, fez um recital na Academia Brasileira de Letras, com ingressos esgotados rapidamente — como acontecera com suas leituras de Simone de Beauvoir, que lotaram todas as sessões em São Paulo e no Rio, e levaram 15 000 pessoas ao Auditório do Ibirapuera, na capital paulista. A partir de 28 de março, poderá ser vista no Masp na instalação Um Maravilhoso Emaranhado, em que divide o papel da arquiteta Lina Bo Bardi com a filha, Fernanda Torres. Ainda neste ano, vai estrelar Velhos Bandidos, longa em que vive a mandante de um assalto a banco, sob direção do filho, Cláudio Torres. A dama tem fibra — e é incansável.

Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935

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