Stella tinha apenas 19 anos quando perdeu a mãe. Na semana anterior, Mirna havia desmaiado em casa, sem explicação aparente. Preocupada, marcou uma consulta com um cardiologista, e Stella a acompanhou. Logo no início do exame, Mirna virou-se para a filha, gritou seu nome e caiu no chão. Foi-se em um enfarto fulminante. Caçula de três filhos, Stella voltou dirigindo do consultório. Não contou imediatamente o acontecido ao pai, que tinha feito três safenas e uma mamária um mês antes. Cuidou de todos os detalhes da shivá, a cerimônia judaica de luto, que dura uma semana.
Nos meses e anos seguintes, Stella sentiu a falta da mãe, claro, mas tocou a vida — completou o curso de Administração na universidade, manteve sua vida social, namorou. Não ficou paralisada, devastada ou revoltada com o destino. Será que sua reação, aparentemente ajustada, significava que estava em negação? Será que, meses ou anos depois, sofreria as consequências de não ter “sofrido o suficiente”? E, em um nível mais profundo, será que seguir em frente com relativa rapidez significava que as pessoas eram, afinal, mais descartáveis do que gostaríamos de admitir?
Na área da saúde, ainda se ensinam teorias desatualizadas sobre o luto. Algumas abordagens da psicanálise, por exemplo, descrevem o processo como uma longa e dolorosa revisão de todas as memórias do falecido, até que a pessoa consiga, enfim, seguir em frente. Já as cinco fases do luto — negação, raiva, barganha, depressão e aceitação — que ganharam popularidade a partir do trabalho de Elisabeth Kübler-Ross com pacientes terminais, continuam sendo amplamente citadas.
A ideia das fases tem apelo intuitivo, pois oferece uma espécie de roteiro emocional aparentemente reconfortante. No entanto, apesar da aceitação generalizada, essa teoria nunca foi validada cientificamente como um caminho universal ou necessário para superar o luto.
Na prática, a ideia das fases do luto muitas vezes mais confunde do que tranquiliza. Se alguém não passa por todas elas ou se recupera “rápido demais”, logo surge a sensação de que algo está errado — como se a dor tivesse sido reprimida e, inevitavelmente, haveria de aflorar no futuro. Pior ainda, aparecem julgamentos morais e culpas desnecessárias: se o sofrimento não foi devastador, será que a perda pesou o bastante? Será que o falecido era realmente amado? “Como assim a esposa de João já voltou para a academia?”; “Como assim o filho de Patrícia já retomou o
trabalho?”; “Como assim Maria já está namorando apenas alguns meses depois da morte do marido?”. A verdade é que nem as experiências individuais nem a literatura científica mais recente sustentam essa visão. O luto é um processo profundamente pessoal, e não existe um roteiro único ou “certo” para vivê-lo.
George Bonanno, professor de psicologia no Teacher’s College, em Nova York, e diretor do Loss, Trauma, and Emotion Lab, dedica sua carreira ao estudo do luto, do trauma e, principalmente, da resiliência. Há décadas, ele investiga como diferentes ligações pessoais — cônjuges, pais, amigos — reagem à perda de alguém próximo e quais fatores contribuem para uma recuperação saudável. Seus achados desafiam frontalmente as concepções tradicionais sobre o luto.
O que Bonanno percebeu é que grande parte do que se sabia sobre o tema vinha de estudos enviesados: tanto derivados da experiência clínica com pessoas vivendo lutos complicados, como de avaliações feitas após a perda, sem conhecimento do estado emocional anterior dos indivíduos.
Para superar essas limitações, sua equipe conduziu estudos epidemiológicos acompanhando enlutados ao longo do tempo. O resultado? O luto não segue um roteiro fixo. Em vez de uma trajetória única e previsível, os estudos revelam cinco padrões distintos. A maioria dos enlutados – cerca de 60% – demonstrou resiliência, apresentando sintomas leves nos primeiros meses, seguidos por uma redução gradual da tristeza e uma adaptação emocional saudável. Outros 18% passaram por um luto moderado no início, com uma melhora progressiva ao longo do tempo, mas sem uma recuperação completa dentro do período observado.
Já 13% dos participantes experimentaram um luto moderado que permaneceu estável por um período prolongado, demorando mais para se transformar. Um grupo menor, cerca de 4%, seguiu uma trajetória prolongada de piora, com sofrimento intenso e persistente por pelo menos dois anos. Por fim, 7% relataram uma melhora dramática: começaram com sintomas severos, mas apresentaram uma recuperação surpreendentemente rápida nos meses seguintes, chegando a níveis de sofrimento semelhantes aos do grupo resiliente.
Esses achados desmontam a noção de que o luto segue uma sequência rígida ou que todos precisam passar pelas mesmas fases. Para a maioria das pessoas, o luto não é uma jornada linear de dor profunda até a aceitação, mas um processo mais fluido, em que a resiliência é a regra, não a exceção. O trabalho de Bonanno abriu caminho para pesquisas em outras culturas que chegaram a conclusões comparáveis.
Um estudo dinamarquês acompanhou um grande grupo de enlutados-cuidadores que integravam uma rede nacional, buscando mapear diferentes trajetórias do luto. Para isso, os pesquisadores aplicaram questionários padronizados em três momentos: alguns meses antes da morte, e novamente seis meses e três anos após o falecimento, analisando como esses cuidadores enfrentavam a perda ao longo do tempo.
Perguntas como “No último mês, com que frequência você sentiu saudades ou anseio pela pessoa que perdeu?” captavam aspectos centrais da experiência emocional. Outros itens exploravam sentimentos mais profundos, como “Sua vida parece vazia ou sem sentido desde sua perda?”, “No último mês, com que frequência você se sentiu atordoado, chocado ou desnorteado com sua perda?” e “Você sente que perdeu sua identidade ou que uma parte de você morreu com essa pessoa?”.
Entre os não parceiros de falecidos— filhos, amigos e irmãos — quatro padrões foram identificados: luto leve (45%), luto moderado com melhora após poucos meses (31%), luto intenso com melhora gradual (16%) e luto intenso e persistente (8%). Entre os parceiros que perderam seus cônjuges, 10% apresentaram um padrão de luto tardio, com um aumento nos sintomas após seis meses.
Isso pode estar ligado ao desafio de se adaptar à rotina sem o parceiro ou à sobrecarga de cuidar dos filhos sozinho. Mas, para muitos, independentemente da trajetória do luto, a relação com quem se foi também passa por uma transformação: aos poucos, a presença da pessoa querida deixa de ser cotidiana e concreta para se tornar algo mais difuso, entrelaçado à memória e ao afeto.
Talvez, no fundo, o que realmente nos assuste não seja apenas a forma como as pessoas enlutadas seguem em frente, mas a constatação de como os mortos pouco a pouco se afastam do centro das conversas, das rotinas, das memórias compartilhadas. Alguém que ontem fazia parte do nosso mundo, que tinha desejos, projetos e manias, de repente passa a existir de outra forma — menos presente no cotidiano, mas ainda entrelaçado àqueles que o amaram. O luto não nos confronta apenas com a perda, mas com a delicada transformação da presença humana —e com o desafio de seguir adiante sem aqueles que um dia pareciam insubstituíveis.
Perder alguém próximo é uma das experiências mais universais — e também uma das mais dolorosas. Para algumas pessoas, o impacto do luto é tão profundo que retomar a vida pode levar anos, ou até nunca acontecer plenamente. Desde 2022, essa dor que não arrefece tem nome oficial: Transtorno do Luto Prolongado. Ele se manifesta em cerca de 7% das pessoas enlutadas quando o sofrimento da perda permanece avassalador por mais de 12 meses, comprometendo a rotina, os relacionamentos e o sentido da vida.
Isso dito, a forma como cada um lida com a perda varia conforme múltiplos fatores, como histórico de depressão e regulação emocional, flexibilidade psicológica (capacidade de adaptação), rede de apoio, circunstâncias da morte (se foi repentina ou violenta) e o tipo de vínculo com quem se foi. A maioria das pessoas, mesmo diante da perda, encontra caminhos para seguir adiante — cada uma à sua maneira.
É fascinante observar como alguns artistas e intelectuais transformam perdas pessoais em expressão criativa. Vários descrevem seu luto como um processo de adaptação, buscando formas de reacender a luz no mundo, de integrar a ausência da pessoa que partiu. A escritora chilena Isabel Allende escreveu o livro “Paula” durante o ano em que a filha estava em coma decorrente do agravamento de uma doença autoimune. O livro, segundo Allende, tinha o objetivo de relatar a Paula, o que estava acontecendo durante sua prolongada “ausência”, certa de que a filha se recuperaria. O texto acabou sendo a forma de Isabel se conectar com a filha que, lentamente, foi indo embora.
Eric Clapton compôs uma das suas canções mais tocantes Tears in Heaven sobre o filho Conor, que faleceu aos 4 anos após cair de uma janela. Nicholas Wolterstorff, um dos principais filósofos católicos da atualidade, teve sua vida marcada pela perda do filho Eric, de 25 anos, em um acidente de montanhismo. Dessa dor nasceu Lament for a Son, um livro em que descreve sua fé abalada, mas não abandonada—Deus, antes previsível e
confiável, tornou-se um mistério insondável. Para Wolterstorff, escrever o livro foi parte do que chama de “possuir redentivamente” sua dor, transformando o sofrimento em algo que pudesse gerar significado.
*Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia