myspace tracker Fiocruz pede socorro em meio à guerra entre bandidos no Rio – My Blog

Fiocruz pede socorro em meio à guerra entre bandidos no Rio

Na entrada do Rio de Janeiro, para quem vem de São Paulo, sobre uma colina à beira da Avenida Brasil, o Castelo Mourisco emoldura a paisagem, como joia do vasto terreno da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), referência mundial em pesquisas científicas e desenvolvimento de vacinas, instalada em uma área de 900 000 metros quadrados por onde circulam 10 000 pessoas diariamente. Nas últimas semanas, contudo, a instituição passou por momentos de tensão, inimagináveis para um centro de sua relevância: traficantes trocaram tiros com policiais civis, alguns à paisana, dentro dos limites da fundação. Foi a primeira ocorrência do gênero dentro do campus, mas o bangue-bangue ao redor é frequente e incômodo, com balas a colidir contra os prédios. Uma vergonha. A Fiocruz paga o preço da falta de segurança na cidade: ela é vizinha de dois complexos de favelas, Manguinhos e Maré, palcos de seguidos confrontos entre agentes oficiais e integrantes de facções criminosas que dominam o vasto território.

Somados todos os dias do ano passado em que a violência levou à paralisação das atividades — entre elas a crucial produção de imunizantes —, a conta chega a trinta, ou um mês de trabalhos interrompidos. “Que país do mundo tem uma instituição como a Fiocruz, patrimônio da sociedade brasileira, sujeita a uma situação como essa?”, disse a VEJA o diretor-­executivo da entidade, Juliano de Carvalho Lima, postado em sua mesa de trabalho cercada de temor. “Vivemos em estado de violência permanente, com uma alta carga de risco.” Na manhã de 8 de janeiro, o pânico tomou conta de parte da comunidade científica ao ver policiais e bandidos correndo por uma das áreas mais movimentadas do complexo, onde ficam o museu, restaurantes e uma agência do Banco do Brasil, e estilhaços feriram uma funcionária. Três criminosos morreram e dois sumiram ao mergulhar no estreito Rio Faria-Timbó, na divisa do terreno.

QUADRO INSÓLITO - Projéteis recolhidos por funcionários: medo permanente
QUADRO INSÓLITO - Projéteis recolhidos por funcionários: medo permanente./.

Os conflitos no entorno, especialmente na Favela da Varginha, explodiram porque, na roda dos crimes praticados pelas quadrilhas do narcotráfico, o QG do braço do Comando Vermelho especializado em roubo de caminhões, a maior parte abordada na Avenida Brasil, se transferiu da Maré para Manguinhos, onde agora são estacionados os veículos e as cargas. Nos tiroteios com a polícia, nem mesmo o castelo ocre, encomendado por Oswaldo Cruz em 1905, e em processo de se tornar Patrimônio da Humanidade, está a salvo: no dia 17, uma bala atravessou uma janela do segundo andar.

A situação agora é de uma pequena cidade praticamente sitiada, sem exageros. Com 9 000 funcionários, entre professores e pesquisadores, e outros 1 500 terceirizados, a Fiocruz tem uma centena de edificações, sendo que 90% delas já foram atingidas por estilhaços dos disparos. Circulam ainda pelo espaço alunos, pacientes atendidos por um centro de saúde e por um hospital com 120 leitos, e visitantes do Museu da Vida.

Continua após a publicidade

TENSÃO - Operação no dia da invasão do campus: situação recorrente
TENSÃO – Operação no dia da invasão do campus: situação recorrenteJosé Lucena/Thenews2/Agência O Globo/.

A situação também é crítica do outro lado da Avenida Brasil, onde fica o Laboratório de Biossegurança Nível 3, que manipula agentes biológicos como o vírus da covid-19. Prédios novos, como um edifício-garagem em fase de planejamento, já sairão do papel com blindagem. Planos de contingência para situações de violência foram traçados e incluem locais seguros para abrigo e rotas de fuga. É como numa guerra. Na creche, que atende 200 filhos de funcionários, o protocolo determina que as crianças se deitem no chão, em caso de confronto. Nada por ali é fácil. O diretor Carvalho Lima se queixa da falta de cooperação do governo estadual e de não receberem aviso prévio sobre as ações nas comunidades.

Essas informações são cada vez mais vitais para a rotina de lá. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, em um raio de 1 quilômetro do campus que fica parte em Manguinhos, parte na Maré, só nos primeiros quinze dias do ano houve cinco trocas de tiros, e 39 no ano passado, a maioria envolvendo operações da polícia. “Mais da metade dos tiroteios na região envolve essas ocorrências”, diz a diretora de dados e transparência do Fogo Cruzado, Maria Isabel Couto. “A Fiocruz é central para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil, mas isso não tem sido levado em consideração no planejamento das ações policiais.” O risco de vida, real, foi insolitamente resumido em um quadro que expõe as balas perdidas encontradas nas dependências da fundação. Os projéteis são acompanhados de relatos das circunstâncias dos confrontos armados. Os mais antigos datam de 2009. Diante do aumento no número de ocorrências, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, que já presidiu a Fiocruz e em 2017 participou de protestos por mais segurança, solicitou ajuda à Polícia Federal para rever e melhorar os procedimentos internos. A direção também pediu audiência com Cláudio Castro. Segundo apurou VEJA, o governador fluminense se comprometeu a receber representantes da instituição, mas, até quinta-feira 6, o encontro não tinha sido agendado.

Continua após a publicidade

“BASTA!” - Nísia Trindade lidera protesto na época em que comandava a Fiocruz: agora, a atual ministra acionou a PF
“BASTA!” - Nísia Trindade lidera protesto na época em que comandava a Fiocruz: agora, a atual ministra acionou a PFPeter Ilicciev/CCS Fiocruz/.

O pedido de socorro da Fiocruz é cada vez mais urgente. A extensa área verde da instituição virou esconderijo de bandidos. Há, hoje, mais ações policiais do que havia em passado recente, mas soam inúteis. “Os criminosos atravessam com facilidade o Faria-Timbó. Os que dominam a região têm seus caminhos para fugir, e a segurança privada não consegue impedir”, diz Victor Santos, secretário estadual de Segurança. O aumento da criminalidade levou também à intensificação de operações nas comunidades que se concentram às margens da Avenida Brasil, mas parece ser insuficiente. Os roubos de carros dispararam no início do mês e alcançaram a impressionante média de 200 ocorrências por dia. No fim de janeiro, seis pessoas morreram em uma operação voltada para coibir quadrilhas de sumiço de cargas no Complexo do Alemão, entre elas, um jardineiro, que tomava café em um bar, e um idoso, atingido na rua. Uma moradora que dormia ao lado do filho ficou ferida.

A discussão sobre os limites das forças de segurança chegou ao Supremo Tribunal Federal. O governo do estado questiona uma liminar, concedida durante a pandemia, que busca restringir a violência policial nas operações. O argumento é que a medida “limita a ostensividade da polícia”. A Fiocruz é contra a revisão da norma e se alinha às organizações de moradores das favelas. O ministro Edson Fachin, relator do processo, determinou que o Rio de Janeiro apresente um plano de atuação nas comunidades. Originalmente, o texto proíbe o uso indiscriminado de helicópteros e obriga a utilização de câmeras corporais. O julgamento teve início na quarta-feira 5, mas foi suspenso por determinação do presidente do STF, Luís Roberto Barroso.

Continua após a publicidade

Em sua história, a Fiocruz registrou grandes momentos de tensão na década de 70, no auge da ditadura militar, quando dez cientistas foram cassados e impedidos de trabalhar. É uma lembrança tenebrosa do passado, recordação que amplia a tragédia do presente, de insegurança e riscos generalizados no dia a dia. A casa merecia existência mais tranquila. Ela pede alguma vacina contra o horror que encurrala.

Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930

Publicidade

About admin