Não é filosofia de boteco: a história da humanidade jamais teria sido a mesma sem o álcool. Os registros mais antigos de consumo de cerveja datam de ao menos 7 000 anos antes de Cristo, na China, mas há pistas de que, antes disso, os primeiros humanos experimentavam a embriaguez por meio da ingestão de frutas caídas dos pés, fermentadas pela natureza. Desde então, as bebidas ganharam aldeias e civilizações, matando a fome e a sede do povo, e promovendo uma aura de prazer e conexão social, apesar dos desgostos e contendas suscitados pelos excessos. A virada de mesa, contudo, começou na esteira da Revolução Industrial, quando, por motivos ideológicos e religiosos, o que era visto como um bem ganhou o rótulo do mal, sendo associado ao pecado, aos crimes e à loucura. A partir daí, o álcool andaria numa corda bamba, equilibrando-se entre o glamour que seria destilado pelo cinema e a prescrição de uma ou outra taça em prol do coração e a pecha de destruidor de lares, corpos e mentes, como passaria a alertar uma corrente da medicina. Contudo, no desenrolar do século XXI, alguns especialistas têm sido categóricos: não há dose mínima segura. O diagnóstico radical ainda suscita debates na comunidade médica, mas parece que veio a calhar num contexto de mudanças, que envolvem uma nova geração menos afeita aos drinques. Com isso, até as empresas mais tradicionais do ramo têm se rendido ao segmento de bebidas sem álcool. É um movimento vigoroso e inédito.
Não é de hoje que se condena o hábito etílico, mas, durante muito tempo, o vilão sempre foi o consumo abusivo, capaz de gerar cicatrizes no fígado, no cérebro e na sociedade. Na primeira metade do século XX, havia até propagandas sugerindo oferecer cerveja para crianças. “Agora sabemos que a ingestão crônica de álcool, mesmo em doses baixas, tem efeitos nocivos para todo o organismo”, diz o psiquiatra Antonio Nardi, professor da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Ciências. Um alerta contundente veio de um grupo de estudiosos liderados pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer. Ao se debruçarem sobre dados populacionais, os experts constataram uma associação entre produtos etílicos, mesmo em pequenas quantidades, e múltiplas formas de tumores. Até a tacinha de vinho diária foi questionada. A soma de achados fez entidades como a OMS pedirem ainda mais parcimônia — quando não o abandono dos copos.
No início deste ano, a imagem da bebida trincou ainda mais quando o então médico-chefe dos EUA, Vivek Murthy, denunciou o elo dos destilados e fermentados com o câncer e recomendou que as latas e garrafas passassem a adotar uma advertência no rótulo sobre seus riscos, à semelhança do que ocorre com o cigarro. Seria o álcool, então, o novo tabaco? Não, na visão dos especialistas. A postura irredutível em relação ao tabagismo (repaginado na versão eletrônica) se deve não só a seus comprovados males à saúde, mas também à atitude da indústria, que por décadas escondeu informações sobre os perigos do fumo. O álcool, foco de inúmeras pesquisas atuais, pode oferecer um manancial de prejuízos, mas, com regulamentação, seria passível de maior controle. “Falamos de uma constante cultural na história da humanidade”, diz Lucas Avelar, historiador do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação da USP. “O problema é que esse consumo ocorre sem regulação, de maneira que estimula os vícios.”
![OUTROS TEMPOS - Estímulo: até as crianças foram alvo das propagandas](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/02/2-f82a7004501fb20860e5ee3d9d9876e2_1024x1024.jpg.jpg)
A postura da autoridade em saúde pública dos Estados Unidos repercutiu, embora os americanos nem sejam os primeiros a seguir nessa direção. Para diminuir as ameaças ligadas à bebedeira, o governo do Canadá reduziu em 2022 o consumo máximo recomendado de cerca de quinze doses por semana para apenas duas (o equivalente a um par de latas de cerveja ou a 60 ml de um destilado). No Brasil, por sua vez, a categoria acaba de ser incluída na lista de itens sobre os quais incidirá o “imposto do pecado”, instituído pela reforma tributária. “A ideia não é assustar, mas informar as pessoas para que possam tomar decisões de forma mais consciente”, diz o psiquiatra André Malbergier, professor da USP e diretor do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas.
A mudança de paradigma à luz das revelações científicas já se reflete no comportamento. “Existe um maior estímulo ao abandono do álcool”, afirma a psicóloga Ilana Pinsky, pesquisadora ligada à Fiocruz e colunista de VEJA. Nas redes sociais, o movimento sober curious, formado por pessoas que deixaram de beber, tem ganhado popularidade, enquanto em países desenvolvidos o consumo tem sido substituído por opções menos danosas — ainda que na teoria. Nações historicamente à frente de seu tempo, Dinamarca e Islândia ilustram a tendência: entre os jovens de 12 a 19 anos, o acesso e a ingestão de bebidas alcoólicas caíram mais de 50% em duas décadas. Embora essa não seja a realidade global — nos países de baixa renda, o consumo e o início precoce ainda são preocupantes —, pode iluminar o que nos espera em breve.
![FOLIA ABSTÊMIA - Mudança de comportamento: geração Z prefere opções sem álcool para se divertir](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/02/GettyImages-1465613549.jpg.jpg)
Atenta, a indústria busca se adaptar ao novo cenário. Nos bares pelo mundo, há uma demanda cada vez maior por mocktails, os coquetéis sem álcool. Na Irlanda, por sua vez, a St. James’s Gate Brewery criou, no ano passado, uma versão zero da centenária cerveja Guinness, enquanto no Brasil as estimativas de venda de cervejas sem álcool chegaram a 480 milhões de litros em 2024 — um crescimento de mais de 20% em relação ao ano anterior. Hoje, até o segmento de vinhos sem álcool, quem diria, ganha escala.
Do ponto de vista da saúde pública, esse movimento é animador, mas ainda longe do que seria o ideal. Segundo dados da OMS, o álcool ainda é responsável por mais de 2,6 milhões de mortes anuais em todo o mundo. Apenas no Brasil, de acordo com a Fiocruz, o impacto sobre a saúde custa, por ano, 18 bilhões de reais, sendo que mais de 1 bilhão dos gastos federais se destinam a hospitalizações e atendimentos médicos. E esses danos não ocorrem de uma forma homogênea. O mais recente levantamento do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool revela que os pretos, pardos e pobres — isto é, a população mais vulnerável economicamente — são os mais vitimados pela ingestão desenfreada.
![NOVO CIGARRO? - Nos EUA: recomendação de advertência nos rótulos de bebidas](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/02/1936367_fotoarena.jpg.jpg)
Como lidar, então, com esse dilema, poupando dores à sociedade sem ferir a liberdade do cidadão? Um olhar para a história pode ser didático. No início do século XX, os Estados Unidos impuseram a Lei Seca, proibindo completamente a fabricação, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas. O resultado: impulsionamento do crime organizado, aumento da procura de itens de baixa qualidade e sem regulamentação e, ao final, uma baixa redução real no consumo. O experimento fracassou e foi revogado treze anos depois de sua instituição, em 1933. Canadá e Reino Unido, por outro lado, têm exemplos a serem seguidos. Entre os britânicos, há infindáveis campanhas públicas para que as bebidas sejam substituídas por versões sem álcool. Entre os canadenses, o governo intervém no processo de distribuição a fim de restringir o acesso sem precisar proibir. Do ponto de vista individual, a regra do bom senso e da moderação seguirá de pé. “Quanto menor a quantidade de álcool ingerida, menor é a probabilidade de adoecer”, afirma o hepatologista Raymundo Paraná, professor da Universidade Federal da Bahia. Um brinde, portanto, à moderação — e outro à possibilidade de consumir sem culpa uma nova geração de produtos feitos sob medida para quem decidiu tomar um porre de abstinência.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930