O presidente Lula conhece como poucos o impacto político da inflação e da carestia dos alimentos. Nas campanhas de 1994 e 1998, ele perdeu para o tucano Fernando Henrique Cardoso, eleito e reeleito depois de domar o dragão que havia tempos corroía o poder de compra da população. Já em 2022, o petista explorou o aumento do preço da comida para derrotar Jair Bolsonaro. Naquele ano, uma das propagandas do PT na televisão perguntava o que era possível comprar com 100 reais. As imagens mostravam que, na gestão de Bolsonaro, o trabalhador levava pouca coisa para casa, como um pacote de salsicha, uma dúzia de ovos e 1 litro de leite. A locutora, então, emendava: “Nos tempos do Lula, você comprava isso e muito mais, o lanche das crianças, pão, cafezinho, a feira, a carne do almoço e também a do churrasquinho do fim de semana”. A promessa, transformada em símbolo da campanha, era de picanha barata e cerveja para acompanhar.
Passados dois anos de mandato, a promessa de carne a preço de pechincha não foi cumprida — muito pelo contrário. O item é um dos produtos da cesta de alimentos que estão em ritmo de escalada de preços, um problema que chega justamente no momento em que Lula enfrenta problemas de imagem. Pesquisa Genial/Quaest, divulgada na segunda-feira 27, mostrou que, pela primeira vez no atual mandato, a reprovação ao trabalho do presidente superou a aprovação, assim como a avaliação negativa ficou à frente da positiva. O resultado decorre de uma série de fatores, como o desgaste monumental sofrido no caso do Pix, a frustração do eleitorado com promessas que não saíram do papel e a percepção negativa sobre os rumos da economia, especialmente sobre a inflação. Para 83% dos entrevistados, o preço dos alimentos nos supermercados subiu em janeiro. Em dezembro, o percentual era de 78%. Em outubro, de 65%. A carestia contribuiu para abalar três dos mais sólidos pilares de apoio a Lula. Ele perdeu oito pontos de aprovação no Nordeste, cinco entre as mulheres e sete entre quem ganha até dois salários mínimos. “A avaliação dos governos é diretamente proporcional à prateleira do supermercado”, diz o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP). “A melhor solução para o problema do preço dos alimentos é a estabilidade econômica”, acrescenta, citando uma lição que tem sido negligenciada pela atual gestão.
Como ocorreu na reação ao caso da suposta taxação do Pix, o governo reagiu à crise dos alimentos com atraso e de forma atrapalhada. O ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, declarou numa entrevista que poderia haver “intervenções” para conter os preços. Como em administrações anteriores do PT houve tentativas de baixar na marra valores de tarifas e produtos específicos, com resultados desastrosos, a declaração repercutiu mal. Tão mal que obrigou Rui Costa a emendar o soneto numa tentativa de afastar o temor de que o governo adotaria medidas artificiais ou populistas. “Nenhuma medida heterodoxa será adotada. Não haverá congelamento, tabelamento, subsídio, fiscalização, rede estatal de supermercados. Isso nunca foi apresentado e não será analisado pelo governo”, escreveu o ministro numa rede social. Outros auxiliares aventaram a possibilidade de a equipe econômica reduzir o imposto de importação de alimentos que estão custando mais barato no exterior do que no Brasil. Os produtores nacionais, que já não morrem de amores por Lula, reclamaram — e o presidente deixou a ideia, por enquanto, de lado.
Por ora, o grande movimento que prevalece no Palácio do Planalto é o de cruzar os dedos, dentro da crença de que a tempestade vai passar, com a queda da cotação do dólar e a futura supersafra agrícola brasileira contribuindo de forma decisiva para domar a inflação dos alimentos. Em entrevista ao site de VEJA, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, declarou que será dada atenção especial, por exemplo, para que agricultores de médio porte aumentem a produção de itens típicos da mesa do brasileiro, por meio de uma política de juros subsidiados. “Vamos usar todos os estímulos para que os preços baixem”, afirmou. Na prática, a estratégia do governo é martelar o discurso de que está fazendo o possível para garantir comida mais barata, a fim de equilibrar a batalha de comunicação. Num vídeo divulgado no domingo 26, Lula, caminhando pela horta da Granja do Torto, alega que o dólar alto, eventos climáticos e o aumento da renda contribuíram para o encarecimento dos preços. Depois, assume o compromisso de reverter a situação.
É mais uma promessa que corre o risco de não ser cumprida. É verdade que algumas das razões para a comida mais cara, como argumentou o presidente, não têm relação direta com ações ou omissões do governo. As poucas chuvas do ano passado contribuíram para a redução da safra de grãos do país. O aumento do consumo mundial também fez os preços subirem no mercado internacional. Lula, no entanto, tem poder para atuar sobre outros fatores. Em seu discurso, o presidente insiste em negligenciar o ponto crucial: boa parte dos males econômicos decorre de um pecado original, o descontrole das contas públicas e a resistência do governo em conter o crescimento das despesas obrigatórias. “Parece estranho, mas a melhor política que Lula poderia fazer para reduzir os preços agrícolas é entregar boas notícias na área fiscal”, diz o economista Fabio Silveira, sócio da consultoria MacroSector.
No fim do ano passado, o dólar disparou porque, entre outros motivos, o pacote de controle de gastos anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, era insuficiente e alimentou a desconfiança de que não há compromisso, de fato, com a responsabilidade fiscal. Como o dólar é um componente importante na formação do preço dos alimentos, o reflexo foi imediato — nas gôndolas, no humor do eleitorado e na popularidade de Lula.
O desafio do presidente é enorme. A inflação do supermercado acumula alta de quase 8% em um ano. É bem mais do que a inflação geral, que está rodando em 4,5%. A picanha, símbolo da campanha petista, está 10% mais cara do que no começo de 2024. No geral, o preço das carnes subiu 20%. O contra-filé, o coxão mole e o acém, as peças mais compradas pelos brasileiros, encareceram 20%, 21% e 26%, respectivamente. A fatura é salgada e generalizada. O óleo de soja aumentou 28%, e o café, mais de 40% (veja o quadro). “É como dar com uma mão e tirar com a outra. Não adianta dar Bolsa Família e emprego, de um lado, e, do outro, a inflação não deixar as pessoas comprarem”, afirma o economista André Braz, coordenador dos índices de preços na Fundação Getulio Vargas (FGV).
É comum que os preços subam mais em alguns anos do que em outros. Mas já são cinco anos seguidos de altas recordes desde o descompasso entre a oferta e a demanda globais provocado pela pandemia de covid-19. A situação se agravou em razão de guerras, como a da Ucrânia, desastres climáticos cada vez mais frequentes e, recentemente, a disparada da taxa de câmbio. Em cinco anos, a inflação da comida já passou dos 50% no Brasil.
Não há aumento de emprego, salário ou benefício social que dê conta de neutralizar o ímpeto do dragão. Uma cesta básica completa está custando mais de 700 reais nos cálculos do Dieese, o departamento de estudos dos sindicatos, ou cerca de 50% do salário mínimo. Antes da pandemia, essa proporção era de 40%. Há três meses, o volume de compras das pessoas nos supermercados não cresce, de acordo com os dados do IBGE, embora os valores totais gastos por elas sigam aumentando. “Os preços dos cardápios subiram bem menos que os dos alimentos. Nós não conseguimos repassar tudo”, conta o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, Paulo Solmucci. Segundo ele, 20% dos estabelecimentos ainda estão operando no prejuízo. Antes da pandemia, eram 2%.
Os danos provocados pelo repique inflacionário são amplos, gerais e irrestritos. Como a saúde das contas públicas não é tratada como deveria pelo governo, sobra para o Banco Central o trabalho de tentar conter a sangria. Na quarta-feira 29, o Comitê de Política Monetária do BC, em decisão unânime, elevou em um ponto percentual a taxa básica de juros, a Selic, que chegou a 13,25% ao ano. Foi a primeira decisão tomada sob a presidência de Gabriel Galípolo, indicado para o cargo por Lula. Em seu comunicado, o colegiado reforçou o diagnóstico de que o governo precisa colaborar: “A percepção dos agentes econômicos sobre o regime fiscal e a sustentabilidade da dívida segue impactando, de forma relevante, os preços de ativos e as expectativas dos agentes”. Enquanto lida com a inflação dos alimentos, o presidente tenta conter outro flanco de desgaste: a possibilidade de um novo reajuste dos combustíveis, previsto para fevereiro. O diesel está sendo comercializado pela Petrobras por um valor 15% mais baixo do que o praticado no mercado internacional, segundo a Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis. A defasagem no caso da gasolina é de 6%.
Pressionado, Lula quer que a petrolífera segure o reajuste o quanto puder. Não é à toa. O presidente conhece como poucos o peso desse tema no humor da população. Na sua primeira campanha vitoriosa ao Palácio do Planalto, ele explorou o preço da gasolina para desgastar o candidato da situação, o tucano José Serra. Depois de vencer a disputa, Lula assumiu o cargo, em 2003, dizendo que uma de suas promessas era garantir aos brasileiros o direito de fazer três refeições ao dia. Mais de duas décadas depois, essa meta, como tantas outras, ainda não foi alcançada, e a paciência da população com o presidente está cada vez menor. Essa onda de rejeição tende a aumentar se o governo insistir em diagnósticos errados, fugir de missões espinhosas e flertar com soluções populistas. A inflação, que hoje tanto atormenta o eleitor, pode custar caro a Lula em 2026.
Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2025, edição nº 2929