No cálculo das probabilidades, era enorme a chance de um comandante com um perfil incendiário e dado a ideias excêntricas dar errado no comando do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um órgão com um longo histórico de respeitabilidade e rigor técnico — características, aliás, fundamentais para o Brasil, que depende dos dados demográficos, geográficos e econômicos do instituto para traçar metas públicas indispensáveis para o desenvolvimento do país. Acabou dando a lógica: um ano e meio após a sua posse como presidente do IBGE, o economista da Unicamp Marcio Pochmann enfrenta a escalada de uma crise que já resultou em protesto de funcionários, renúncia de diretores e denúncias contra sua gestão temerária. “Tinha tudo para dar errado, e deu mesmo”, diz Edmar Bacha, ex-presidente do IBGE. “Ter uma administração desastrosa como essa é um problema para as estatísticas do país.”
O alerta partiu de quem conhece Pochmann de perto. Em carta aberta divulgada nos últimos dias, 134 servidores do IBGE acusaram Pochmann de adotar postura autoritária e desrespeitar o corpo técnico da casa. “Sua gestão ameaça seriamente a missão institucional do IBGE”, diz o texto. Semanas antes, o descontentamento já havia levado dois dos principais diretores do órgão a pedir exoneração de seus cargos. O envolvimento do alto escalão sinaliza o agravamento de uma crise de confiança que se intensificou com o anúncio, no ano passado, da criação da Fundação IBGE+, um órgão público-privado planejado por Pochmann para, em tese, promover atividades de educação e pesquisa.
Apelidada pelos servidores de “IBGE paralelo”, a fundação surgiu com um objetivo suspeito: captar mais recursos para o órgão federal. Isso porque, como autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, o IBGE depende unicamente dos recursos repassados pela União. Já o IBGE+ poderia estabelecer parcerias com empresas e, assim, ampliar o seu modelo de financiamento. É aí que mora o perigo. A associação do IBGE com empresas privadas compromete a histórica imparcialidade dos dados produzidos pelo instituto e abre espaço para que interesses externos influenciem as estatísticas oficiais. Como se não bastasse, o novo modelo, segundo os críticos, abriria as portas à prática de negócios pouco republicanos dentro do instituto.
O plano permaneceu em sigilo até setembro de 2024, quando o estatuto do IBGE+ foi divulgado. “Tudo isso foi feito em segredo, gestado por quase um ano”, diz uma servidora do IBGE, em condição de anonimato. “Ficamos espantados.” Propostas parecidas já foram consideradas anteriormente — e descartadas. “A ideia não é nova nem boa”, diz Wasmália Bivar, presidente do IBGE entre 2011 e 2016. “Nunca foi adiante porque a captação externa de recursos pode desencadear uma crise de confiança.” Por isso, os servidores reivindicam que a criação do instituto seja revogada. “Pedimos que Pochmann suspenda a decisão e estabeleça diálogo”, diz Bruno Perez, diretor do Sindicato dos Trabalhadores do IBGE (Assibge). A postura adotada até aqui é outra. Em notificação extrajudicial, Pochmann exigiu que o sindicato pare de usar a sigla IBGE em seu nome, medida que a entidade avalia como “retaliatória”.
Apesar das críticas e da pressão que vem sofrendo, o presidente do IBGE mantém o seu projeto polêmico. Trata-se de uma postura habitual do economista. Indicado por Lula para assumir a chefia do IBGE, ele pertence à ala mais radical do PT e tem convicções ideológicas alinhadas ao antigo receituário da esquerda. Essa característica ficou evidente entre 2007 e 2012, quando comandou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também por determinação de Lula. Naquele período, Pochmann ficou marcado pela gestão autoritária e intervencionista. Logo que assumiu o Ipea, o petista tratou de afastar quatro economistas respeitáveis que conduziam pesquisas no instituto — apenas porque não estavam alinhados à cartilha a ser defendida. Ele também congelou estudos na área da Previdência e encomendou pesquisas com viés ideológico, ferindo a premissa de independência do instituto.
O mau exemplo do passado e as novas e questionáveis manobras no IBGE colocam em xeque o futuro de Pochmann à frente do instituto. Procurado por VEJA, ele não atendeu à reportagem. Responsável, ao menos em teoria, pela indicação de seu nome para a chefia do IBGE, o Ministério do Planejamento não se pronunciou até o fechamento da reportagem. “Aparentemente, a ministra Simone Tebet continua não apitando”, diz Bacha, para quem o futuro do IBGE está vinculado unicamente ao humor do presidente Lula, que é quem determina, de fato, se Pochmann será mantido no cargo. Enquanto uma solução não vier, o IBGE continuará passando por alguns dos dias mais conflituosos de sua história.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2025, edição nº 2928