Na inauguração da estatal de tecnologia Ceitec, em fevereiro de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então em seu segundo mandato, recorreu a uma imagem ufanista para justificar o investimento de 400 milhões de reais bancado pelos contribuintes para a construção da estatal. “A Ceitec é o começo da caminhada do Brasil para um futuro promissor”, disse o presidente. Instalada em Porto Alegre (RS), a companhia abria as portas após dez anos de tentativas frustradas, com equipamentos doados pela americana Motorola e a missão de colocar o país na vanguarda do mercado mundial de microchips. Na prática, a ideia se revelou um fiasco monumental. Conhecida como a estatal do “chip do boi”, criada para rastrear rebanhos, a empresa degringolou rapidamente. No ano passado inteiro, a Ceitec emitiu apenas sete notas fiscais aos clientes. O faturamento total foi de meros 137 000 reais — ou o preço de um automóvel SUV básico. Com 99 funcionários, as despesas alcançaram 87 milhões de reais. E, mesmo após um aporte de 40 milhões do Tesouro Nacional, a estatal encerrou o ano com prejuízo líquido de 47 milhões.
O desempenho da Ceitec simboliza como políticas erráticas, aparelhamento da máquina pública e má gestão torram o já escasso dinheiro público. Em vez de nos levar para o futuro, como alardeava Lula, as estatais nos mantêm atados ao passado. “A Ceitec é um dos grandes escândalos do Brasil”, diz Elena Landau, ex-diretora de privatizações do BNDES. Procurada por VEJA, a empresa não retornou os pedidos de entrevista.
O debate sobre o desperdício de dinheiro com as estatais engrossou nos últimos meses, em meio à pressão para que o governo corte gastos. Estima-se que haja pelo menos 475 empresas públicas no país, das quais 292 pertencem a governos estaduais. A União opera 123 companhias, que acumularam um rombo de 6 bilhões de reais de janeiro a novembro do ano passado, segundo o Banco Central (BC) — é o maior tombo da história. O buraco é quase dez vezes maior que o déficit de 656 milhões registrados durante todo o ano de 2023, e ainda vai aumentar. O BC divulgará os dados de dezembro apenas no fim do mês, mas o Instituto Fiscal Independente (IFI), vinculado ao Senado, estima que as estatais federais encerraram 2024 com perdas de 7,2 bilhões de reais.
![INCERTEZAS - Agência dos Correios: empresa corre risco de insolvência após cobrir rombo de fundo de pensão](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/2-53485135649_dc38176264_o.jpg.jpg)
O principal sorvedouro de recursos são as dezessete empresas que vivem às custas do Tesouro, conhecidas como estatais dependentes. O segundo grupo é formado pelas 44 companhias cuja geração própria de caixa é capaz, em tese, de bancar as despesas. Mesmo elas podem ampliar o rombo, quando recorrem a aportes emergenciais do governo para fechar as contas — e há boas chances de isso ocorrer em breve. Ao elaborar o Orçamento de 2025, que será votado em fevereiro, após o recesso parlamentar, o Ministério da Fazenda estimou que sete estatais podem demandar socorro: Banco do Nordeste, Correios, ENBPar, Emgea, Casa da Moeda, Codern e Infraero. Entre os ministérios, o de Minas e Energia, de Alexandre Silveira, é um dos campeões em número de estatais, com 29 delas sob seu controle.
O saco sem fundo para manter todas essas estatais é o principal argumento de quem defende uma redução drástica da máquina pública. “A Constituição restringe a atuação do Estado na economia a áreas de relevante interesse coletivo”, diz Diogo Mac Cord, que comandou a Secretaria de Desestatização no governo Bolsonaro. Tal premissa, contudo, não tem sido cumprida, especialmente nos governos petistas.
![FARTURA - Alexandre Silveira: Ministério de Energia responde por 29 estatais](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/3-54066878405_f6d8f505de_o.jpg.jpg)
A gelatinosa interpretação sobre o que atende, de fato, aos interesses nacionais escora a feroz defesa que o governo Lula faz das estatais. É o caso da Codevasf, que atua em obras no Nordeste. Com uma receita pífia de 48 milhões de reais em 2023, ela reportou prejuízo de 1,3 bilhão de reais. A conta só não foi pior porque o Tesouro — leia-se, os contribuintes — injetou 1,2 bilhão na companhia. Em nota enviada a VEJA, a Codevasf evoca sua “finalidade social e natureza pública” para justificar o buraco. “Por sua natureza singular, não é possível mensurar a atuação por meio de indicadores de mercado, típicos de empresas privadas ou estatais com fins lucrativos”, afirma. A empresa pode não visar lucros, mas é uma generosa fonte de riqueza para os parceiros de negócios. Em setembro de 2023, a Polícia Federal deflagrou a Operação Benesse para investigar o desvio de recursos em contratos da Codevasf. Segundo os investigadores, há indícios de fraudes em licitações, lavagem de dinheiro e outros crimes. A operação levou a Controladoria-Geral da União e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a criar uma força-tarefa para apurar a formação de cartel nas licitações da estatal.
![PÓDIO - Plataforma da Petrobras: filial da Holanda é campeã de prejuízos](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/4-FPSO-Sepetiba_Credito-Acervo-SBM.jpg.jpg)
Enquanto a função social da Codevasf vira caso de polícia, o governo compra brigas com o Banco Central por discordar da metodologia da instituição para calcular o déficit. Para chegar ao rombo de 6 bilhões de reais acumulados até novembro, o BC analisa as entradas e saídas das empresas. O Ministério da Gestão argumenta que essa conta coloca no mesmo balaio despesas correntes, como a folha de pagamento, e os investimentos necessários para desenvolver o país. Um exemplo seria a Emgepron, vinculada ao Ministério da Defesa. Com 10 bilhões de reais em caixa após aportes feitos pelo Tesouro, a empresa começou a construir quatro fragatas para a Marinha. Sem novas injeções, os dispêndios a tornaram deficitária aos olhos do BC. “O cálculo do resultado primário não é capaz de avaliar a saúde financeira das empresas”, argumenta o ministério em nota a VEJA. Por motivos óbvios, esse tipo de argumentação está longe de encerrar o debate. “Se os déficits são gerados pelas políticas públicas, é preciso mostrar onde o dinheiro foi investido”, afirma Sérgio Lazzarini, professor do Insper.
Espera-se que o governo tenha igual transparência para explicar como algumas estatais com geração própria de receitas também estão no vermelho. Dados do Ministério da Gestão mostram que, no ano retrasado, 27 delas reportaram um prejuízo líquido total de 5,3 bilhões de reais. No topo da lista, com perdas de 1,3 bilhão de reais, está a PNBV, uma subsidiária da Petrobras com sede na Holanda e focada na compra, venda e leasing de equipamentos. Em segundo, está a Codevasf. Os Correios fecham o pódio com um rombo de 596 milhões de reais. Entre as três, apenas a Codevasf é classificada como dependente. As outras duas, portanto, deveriam sustentar-se sozinhas.
Os dados preocupantes a respeito do caixa das estatais são um resultado direto da resistência do PT a qualquer processo de desestatização. No governo Fernando Henrique Cardoso, o partido esteve na linha de frente contra as privatizações de empresas de setores como o de telefonia (felizmente para o país, a oposição não teve efeito algum). Logo no início da nova gestão de Lula, o presidente mandou parar todos os processos de desestatização que estavam em curso, como o dos Correios. A privatização desenhada no governo Bolsonaro foi suspensa e os problemas só crescem. No acumulado de 2024 até setembro, a companhia já registra prejuízo de 2 bilhões de reais. Com isso, está muito perto de superar o pior resultado de sua história — as perdas de 2,1 bilhões vistas em 2015, no governo Dilma Rousseff. Para piorar, em novembro passado a empresa concordou em injetar 7,6 bilhões de reais no Postalis, o fundo de pensão de seus funcionários, que corre para tapar um buraco de 15 bilhões. Para equilibrar as contas, a diretoria impôs medidas de contenção de gastos. No ofício aos funcionários, a empresa alegou que, sem elas, corria o risco de insolvência. Em nota a VEJA, os Correios atribuem as dificuldades ao “processo de sucateamento conduzido pela gestão anterior, que estava privatizando a estatal”. Mesmo que volte para o azul com os cortes de gastos, sua própria finalidade é questionada. “Uma estatal para transportar encomendas e cartas não faz mais sentido”, diz Marcus Pestana, diretor-executivo do IFI.
![EXEMPLO - Avião da Embraer: privatização permitiu que empresa se tornasse líder global](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/2577033_fotoarena.jpg.jpg)
É claro que mesmo os defensores mais convictos das privatizações reconhecem que não se trata de entregar tudo para a iniciativa privada e lavar as mãos. Os apagões de 2023 e 2024 ainda estão frescos na memória de milhões de paulistas que sofreram com a ineficiência da Enel. A solução para que não se troque um mau serviço estatal por outro igualmente ruim de uma empresa privada é tornar mais rigorosas a regulação, a fiscalização e a punição dos desvios. “Todo serviço público deve ter um comando, um prazo e uma consequência em caso de descumprimento”, diz Mac Cord. “A inércia privada deve ser punida.” Em outras áreas, a própria concorrência pode estimular o desenvolvimento de ex-estatais. É o caso da Embraer, privatizada em 1994 e hoje em dia uma das maiores fabricantes de aviões do mundo. Em um mercado cada vez mais competitivo, a companhia faturou 21,7 bilhões de reais no acumulado de 2024 até setembro e lucrou 1,5 bilhão.
![CONTAGEM REGRESSIVA - Base de Alcântara: nova estatal para lançar foguetes](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/01/6-50012986453_22d64d33b4_o.jpg.jpg)
Historicamente, como já lembrou em suas colunas em VEJA o ex-ministro Maílson da Nóbrega, países como Japão e Inglaterra criaram estatais no século XIX para estimular o desenvolvimento em áreas como a da infraestrutura. Quando o mercado se mostrou capaz de investir nesse e em outros setores, essas nações aceleraram as privatizações. O Brasil continua preso ao passado, e o mais recente capítulo foi a criação de uma estatal subordinada ao Ministério da Defesa cujo propósito é lançar foguetes a partir da base de Alcântara, no Maranhão. Com ela, espera-se que o Brasil domine tecnologias estratégicas que nos coloquem em pé de igualdade com nações mais avançadas nesse campo. Considerando-se o histórico de desperdício, o mais provável é que a Alada, como foi batizada a nova companhia, contribua apenas para lançar mais prejuízos ao bilionário saldo negativo das estatais federais.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2025, edição nº 2928