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Tia Cy

Não sei dizer se a Tia Cy tinha tanta satisfação com minha amizade como eu sempre tive — e tenho — orgulho de ter sido amigo, confidente e correspondente dela nos últimos quase 30 anos. Isso pouco importa: este não é um texto sobre mim, é apenas a minha perspectiva sobre ela, o luto, a saudade, a distância.

Só que estou lendo um livro sobre o qual gostaria de falar para ela e acho até que ela ficaria feliz em saber desta travessia bibliográfica empreendida pelo forasteiro sobrinho-neto de tão bissextas aparições. A autora é a pensadora Julia Kristeva, francesa nascida na Bulgária, e vejo semelhanças entre o texto dela e as cartas de minha tia. Ambas são vozes femininas. E sempre vi a Tia Cy também como uma feminista, alguém que em plenos anos 1960 saiu do modelo que parecia ser a regra para as mulheres de uma família simples do interior paulista e foi estudar sociologia em São Paulo.

Além disso, nas cartas que me enviava, a Tia Cy gostava de escrever sobre suas reflexões filosóficas e psicanalíticas — Kristeva é filósofa e lacaniana. Por fim, a Tia Cy foi a primeira escritora que conheci e com quem tive o privilégio de debater, ao longo das últimas décadas, sobre gostos literários, veleidades artísticas, autores prediletos e caminhos buscados no escrever. A búlgaro-francesa é linguista e crítica literária.

Queria ter escrito a ela uma carta com minha máquina de escrever iugoslava — não deu tempo

Mas vou me ater aqui a um trecho do livro que estou lendo — que, na tradução em inglês, se chama Strangers to Ourselves. Não serei literal, vou parafrasear a autora, acrescentando as pitadas de minhas percepções. Em linhas gerais, ela fala que um estrangeiro jamais tem seu luto compreendido por aqueles que o rodeiam porque os seus entes queridos são aqueles que foram velados e sepultados em outra língua. Daí vem o sofrimento.

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É bonita essa leitura. Dolorosa, mas bonita. Experimentar o luto à distância é das experiências mais profundas e, ao mesmo tempo, vazias daquele que envereda por uma vida no degredo. Falta o ritual. Faltam os abraços nos que ficam e dos que ficam. Falta ser presente no momento da celebração da ausência. Fica faltando o encerramento.

Tia Cy não é minha primeira perda nesses já sete anos de vida no estrangeiro, mas aquela que mais se fazia existente em meu dia a dia. Era uma voz, materializada em manuscritos de tinta azul, constante em meus pensamentos. Havia sempre a expectativa de uma nova carta na caixinha do correio, ainda que, ultimamente, estas rareassem mais e mais tanto daqui para lá quanto de lá para cá. No fim do ano, quando ganhei uma antiga máquina de escrever iugoslava de minha mulher, esta foi minha primeira ideia: ano que vem vou estrear a escrita aqui com uma carta para a Tia Cy.

Não deu tempo.

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Fica sempre o arrependimento pelas coisas que deixamos para depois, isto é inevitável.

À minha volta, aqui em meu escritório nos confins da Eslovênia, a saudade da Tia Cy vive nas lembranças de tantas histórias que ela me contou nas centenas de cartas que trocamos — pessoalmente mesmo, vimo-nos apenas umas três ou quatro vezes. E nos livros de minha biblioteca pessoal, já que alguns deles me foram carinhosamente repassados por ela e têm, grafados com a esmerada caligrafia dela, o nome Nelcy na folha de rosto, seguido pelo ano da aquisição. Nascida em 15 de junho de 1939, Nelcy Fontana Ramos deixou este mundo no último dia 15 de janeiro.

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